terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

De Lorosae a Loromunu, Timor é um espanto

Timor das praias de água transparente, recifes de corais e portentosas montanhas. Da ponta Lorosae (onde nasce o sol) à Loromonu (onde o sol se põe) a viajar sem sabermos o que vamos encontrar. No fim, não há como não nos rendermos à beleza desta terra.
Quando aterramos no aeroporto Presidente Nicolau Lobato e temos de atravessar a pista a pé, até à minúscula sala, com o tapete rolante minúsculo, que nos devolverá as malas que despachamos há mais de 40 horas, tudo à nossa volta parece querer reforçar a evidência de que acabamos de aterrar num país de terceiro mundo. Mas um aeroporto é só um aeroporto.
Estamos em Timor-Leste, um país tão distante e tão próximo de nós ao mesmo tempo. Estamos num bocadinho da Ásia onde se fala português (na verdade, não se fala assim tanto português, nisso os indonésios foram bem-sucedidos), e sentimo-nos estranhamente em casa. Não sabíamos bem o que esperar de Díli e, talvez por isso, quase tudo nos tenha surpreendido: o trânsito caótico de Comoro; a animação na Avenida de Portugal, ao final do dia, com grupos de pessoas a fazer jogging (jogging, leram bem), crianças a mergulhar no mar e cardumes de peixes expostos nos muros, ou pendurados nas árvores; o som da mesquita; as motorizadas com mais do que duas pessoas em cima; o recorte perfeito do crocodilo nas montanhas, com o Cristo Rei na ponta do nariz; as habitações precárias; as habitações de luxo; os porcos no meio da estrada (porcos, leram bem) – e os cães e as galinhas e as cabras; os hotéis de cinco estrelas; o Palácio do Governo; o mercado da fruta em Lecidere; a catedral; o Timor Plaza (a outra catedral, a do consumo); os restaurantes gourmet; os tiga rodas com carne frita; a praia de areia branca...
Mas vamos por partes, que esta cidade, rural e cosmopolita ao mesmo tempo, tem muito que se lhe diga.
Um gin na praia
A primeira coisa que fazemos depois de largar as malas é ir até à praia da Areia da Branca. Sentamo-nos numa esplanada, a que tem as melhores panquecas de Díli (e portanto de Timor-Leste, porque que se saiba não se fazem panquecas fora da capital), a beber uma água de coco à sombra de uma árvore, com o Pacífico à nossa frente e parece-nos que o tempo devia parar naquele momento. A praia está praticamente vazia, porque é dia de semana e só ao domingo costuma encher-se de banhistas. E quando o sol se põe, com tal rapidez que parece que o estamos a ver em stop motion, a praia da Areia Branca parece-nos a mais bonita do mundo, até conhecermos todas as outras de Timor-Leste. Seja como for, não perde o estatuto da praia com o mais bonito pôr do sol, ou pelo menos um dos mais bonitos.
(Já agora, um parêntesis para dizer que a melhor praia de Díli é a praia dos Coqueiros. Para lá chegar é preciso passar Comoro e uma encruzilhada junto à pista do aeroporto. Depois é procurar o cemitério e estacionar.)
Há pescadores que lançam as redes no mar e se a pescaria for boa não faltará peixe à venda na beira da estrada, sobretudo ao final do dia, quando as pessoas saem do trabalho.
É, aliás, ao final do dia que a cidade se torna mais interessante, por estar menos calor e por haver grande movimentação na rua, sobretudo na marginal (quase todas as lojas, incluindo as do shopping Timor Plaza fecham às 18h), onde se vê a grande variedade de nacionalidades que vivem na capital. Há os que fazem jogging; há os que se sentam com telemóveis e computadores portáteis em Lecidere; há os que aproveitam para fazer compras no mercado da fruta, este sim aberto até mais tarde; há os que tomam banho no mar, sobretudo crianças, ali junto ao farol; há os que andam de bicicleta; há os que vão beber um gin à Diza, e por aí fora.
Vista daqui, Díli é uma cidade cosmopolita (com galos esquizofrénicos que cantam a noite toda), onde não faltam restaurantes de comida de praticamente todos os cantos do mundo. Suspeitamos que nesta cidade se come melhor do que em muitos dos melhores restaurantes ocidentais. E também podemos apostar que se bebe o melhor café do mundo, no Letefohoe Coffee Shop, junto ao Royal Beach (sim, já provámos o famoso, e delicioso, café indonésio que os Luwac defecam).
Ainda por cima, também há o equivalente às barracas das bifanas, ou carrinhos de hot dogs, que é uma coisa que fica sempre bem em qualquer cidade do mundo, só que tipicamente timorense, com espetadas de vários tipos de carne e katupa, um arroz com leite de coco embrulhado em folhas de palmeira.
Robby Sanety na estereofonia
É quando passeamos no centro da cidade que nos apercebemos o quanto Díli é confusa, suja e excitante. Há sempre muito trânsito, as motorizadas parecem formigas desencarreiradas e não nos parece que as regras sejam uma preocupação dos condutores. Depois, está sempre muito calor. Sair de casa depois das 10h não é lá muito boa ideia na altura do ano que começa a pedir chuva, como é o caso de Novembro. Além disso, as lojas de Comoro são quase todas de chineses, portanto a quantidade de brinquedos, flores e outras tralhas de plástico, roupa sintética e aparelhos electrónicos é bastante avultada por metro quadrado. Isto para não falar das gigantescas colunas de som, que mostram o que valem em decibéis pouco recomendáveis. Pelo menos é o Robby Sanety que canta Hakarak o mai lalais (qualquer coisa sobre querer que a sua amada chegue depressa). Percebe-se o sucesso da música entre os jovens timorenses com penteados rockabilly e olhares de soslaio para as jovens de sorrisos rasgados e cabelos esticados em rabos-de-cavalo que entram e saem das microlets, os “autocarros” que circulam pela cidade.
Mas no meio de tanta confusão de lojas há algumas preciosidades, como a dos alfaiates, que costuram, nas suas Singer a pedal, virados para a rua. Os modelos expostos não nos convencem muito, ao contrário do que acontece no Mercado dos Tais, o tecido tradicional de Timor. Aqui somos bem capazes de perder a cabeça. Algumas mulheres tecem os fios de algodão tingidos nos teares de madeira e a profusão de cores e motivos, num mercado bem arranjado e bastante silencioso, são uma espécie de bálsamo no meio de uma cidade caótica e barulhenta. As mulheres de dentes vermelhos do betel, uma planta que se masca para ajudar a enganar a fome, e vestidas com oscamabatic (tecidos tingidos enrolados à cintura) contrastam com a população que anda de um lado para o outro nas ruas.
Também há uma boa parte da população que fica em casa, sentada atrás das bancas de legumes da horta, rodeada de dúzias de crianças e bebés seminus, de cães, uma ou outra cabra e várias galinhas. Ao lado das bancas é comum encontrar-se a campa dos familiares mortos. Mortos e vivos lado a lado.
Outros penduram os legumes e as frutas em paus e andam com eles às costas pela cidade, ou em carrinhos de mão puxados por bicicletas. Um cacho de bananas, mais quatro abacates (que acabam por apodrecer, porque não sabemos o que fazer com eles), custam-nos três dólares.
Também há vendedores de rua mais direccionados para as crianças e jovens (esta gente percebe de marketing sem o saber): vendem pequenas espetadas de carne frita e fatias de manga em saquinhos de plásticos, às portas das escolas. Alguns também têm gelados poloretis. À volta deles juntam-se grupos com as cores das fardas das escolas.
Nesta altura há bandeiras timorenses espalhadas por toda a cidade, por causa das comemorações dos 40 anos da declaração da Independência de Timor-Leste, no dia 28 de Novembro de 1975. Nestes 40 anos o país passou por tudo aquilo que sabemos (só nos primeiros quatro anos de ocupação indonésia Timor-Leste perdeu 23% da sua população), mas, contra tudo e contra todos, conseguiu vencer, transformando-se na mais jovem nação do mundo. Basta dar uma vista de olhos no Museu da Resistência para nos vergarmos perante a coragem deste povo e, depois, arrepiarmo-nos ainda mais no cemitério de Santa Cruz.
Lá, no museu, lê-se: “Deus criou Timor para nos dar madeira de sândalo”, Tomé Pires, Summa Oriental, 1514, mas parece que Tomé Pires se enganou. Se Deus criou Timor tinha, seguramente, outros planos para este país. 
Ataúro, a ilha do sossego
A ilha que se vê de Díli, Ataúro, fica a cerca de 25 quilómetros e é perfeita para uns dias de puro relaxamento. E o puro aqui tem todo um outro significado.
Numa hora chega-se a Ataúro (optando pelo Nakroma, que faz a viagem semanalmente, demora mais tempo e é muito mais barato) e com sorte podemos ver golfinhos na viagem, ou avistar as baleias, que costumam incluir esta zona nas suas rotas migratórias, por esta altura do ano. Não tivemos essa sorte, infelizmente. 
Também não explorámos a ilha como merecia (há vários barcos de pescadores que nos levam a diferentes praias e a sítios ainda mais recônditos), o único esforço que fizemos foi procurar as ruínas da prisão da época colonial portuguesa, para descobrir que nem as ruínas sobram, apenas uma placa a referir que ali existiu uma prisão. De resto, limitámo-nos a desfrutar as magníficas vistas do resort e, sobretudo, o silêncio – aqui não há galos esquizofrénicos a cantar toda a noite, nem cães a ladrar.
A ilha tem cerca de 10 mil habitantes e os poucos que se cruzaram connosco pareceram-nos bastante mais reservados do que os de Díli, talvez por influência do protestantismo, a religião professada pela maioria.
No mercado, junto ao porto, vende-se maioritariamente peixe seco e algas e mesmo aí não há grande ruído ou frenesim. Nem aí, nem no atelier das famosas bonecas de Ataúro, onde umas quantas costureiras as fazem.
É um sossego, esta ilha.
Ponta Leste
Lorosae, onde o sol nasce

Quando saímos de Díli em direcção a Baucau, a segunda maior cidade do país, somos imediatamente confrontados, primeiro, com a omnipresença da montanha, no serpenteado e sobe e desce da estrada, e depois com as vistas sobre o mar, sobre a imensidão do mar e do recorte das praias.
A silhueta dos montes que nos faz pensar nas figuras do teatro de sombras, onde não falta o detalhe das árvores desenhado nos altos e baixos, acompanha-nos grande parte da viagem.
Sim, as montanhas não parecem verdadeiras, ao longe, só que nada é tão real em Timor-Leste como a montanha, mesmo quando parece irreal. Mas isso iríamos descobrir depois, por enquanto descíamos até Hera, para depois atravessar Metinaro e seguir para Manatuto, parar o carro para entrar no mar, porque sim, porque está mesmo ali, imenso e ostensivo com os corais à mostra, e continuar caminho com a roupa molhada, chegar a Vemasse com a roupa quase seca e entrar no distrito de Baucau. Nós e as coloridas “biscotas” (o transporte público que circula entre distritos), baptizadas com nomes como “Que Pena”, ou “John Rambo”, atulhadas de gente e de todo o tipo de carga, que pode incluir colchões ou veículos motorizados presos nas traseiras e cabras presas no tejadilho.
A primeira coisa que salta à vista é o verde, ou melhor, os diferentes tons de verde das árvores. Estávamos particularmente interessados nas árvores, por causa da acácia rubra -  provavelmente a árvore mais bonita do mundo -, mas o verde impunha-se. A segunda coisa, já no centro da cidade, na parte velha, é a pousada. Um belíssimo edifício construído pelos portugueses nos anos 1950 que se ergue sobranceiro na colina, como se quisesse lembrar a todos a beleza da civilização.
O mesmo não se pode dizer em relação ao antigo mercado, que espreitamos pelo portão fechado a caminho do Amália, um restaurante que se diz de comida portuguesa, que serve bacalhau à Brás, por exemplo, e onde se pode pedir uma garrafa de vinho tinto (fora de Díli são raros os sítios onde se pode comprar vinho), mas também uma água sal (uma espécie de sopa de peixe) maravilhosa. O peixe coco da sopa tinha sido pescado nesse dia por um dos clientes do restaurante, que estava a almoçar ao nosso lado e nos explicou que faz pesca submarina.
Como a congestão não nos preocupa, decidimos ir dar um mergulho de seguida. Já tínhamos ouvido falar das praias de Baucau, de como eram bonitas e perigosas, por causa dos crocodilos, que costumam dar o ar da sua graça por estas bandas, mas não tínhamos como imaginar que seriam tão...selvagens. Uma pessoa desce quase a pique até à praia (mal sabíamos as descidas a pique que ainda teríamos pela frente), conduz o jipe paralelamente ao mar, pelo meio dos campos, onde pastam cabras, pára e de repente parece que acabou de chegar a uma ilha onde ninguém pousou os pés antes de nós. Digamos que as cabras poderiam ser uma falha de raccord e o facto de chegarmos a uma ilha de carro, e não de barco, também.
E a referência cinematográfica não está aqui por acaso, é tudo demasiado fotogénico para ser real, a areia branca, a água azul e a praia deserta. Isto para não falar da temperatura da água e da sensação de mergulhar num mar tão limpo, que são coisas que não cabem nas películas.
Estávamos nisto, fascinados com tanta beleza natural, e ainda não tínhamos chegado ao pequeno ilhéu de Jaco, considerada por muitos um paraíso na Terra.
Jaco não é deste mundo
As quase duas horas desde Baucau até à pitoresca Com, que é onde termina a estrada, são muito diferentes das duas horas e tal de viagem de Díli a Baucau: as estradas estão em pior estado, ainda que bastante transitáveis, o relevo é maioritariamente plano e o tráfego diminui consideravelmente. O que faz com que, por sua vez, aumente o número de cabras, porcos, galinha e caraus (uns bois que parecem búfalos) nas faixas de rodagem.
Chegados à pequena vila, fica-se com a sensação que se entrou num pequeno oásis com o resort bem arranjado a destacar-se. As crianças que o atravessam, vestidas com as fardas da escola, e os sorrisos que lhes são tão característicos, dão-lhe um ar ainda mais aprazível.
Numa pequena visita pela vila – uma caminhada de 10 minutos, de ida e volta, na rua principal – fica-se a saber que, além do resort ,há umas quantas guest houses, onde se pode comer uma bela refeição, tipicamente timorense, a um preço muito económico. Percebe-se que, apesar de sermos os únicos turistas, além de um australiano, a população está à espera dos malais (estrangeiros) para lhes venderem as pequenas peças de artesanato que fazem. Até aqui só nos tinham pedido cumprimentos, sobretudo aos pequenos que viajam connosco, como se tocar num malai fosse uma coisa rara.
Saímos de Com, com uns quantos colares e uma casa típica de Los Palos em miniatura,  em direcção a Tutuala e quando vimos a placa para Jaco pareceu-nos que se tratava de um engano. Provavelmente o vento tinha inclinado a placa para o sítio errado, pensámos, mas não havia nenhuma outra estrada, se é que se podia chamar estrada àquilo.
Enfim, fomos por ali abaixo, afinal toda a gente sabe que para chegar ao paraíso são precisos alguns sacrifícios. E, além disso, íamos fazer o quê, depois de tantas horas de viagem, desistir? Bem, não que isso não nos tenha ocorrido a certa altura, mas a verdade é que passados os 40 minutos que demorámos a percorrer os oito quilómetros que nos levam a Valu, a praia em frente a Jaco, apetece-nos agradecer.
Um dia esta estrada será mais fácil e esta praia estará cheia de gente. Gente muito mais animada, logo muito mais barulhenta, do que o grupo de brasileiras que pernoitou na mesma altura que nós.
Nada contra festas e alegria, aliás, ninguém parece incomodar-se com isso, mas, ou estamos numa idade, digamos, madura, ou aquele sítio pareceu-nos demasiado sagrado para ser profanado com actividades mundanas.
Aliás, Jaco é efectivamente considerado sagrado pelos timorenses – não é permitido pernoitar no ilhéu por isso mesmo, assim sendo temos de montar as tendas do lado de cá, depois de apanhar uns quantos tamarindos, adormecer ao som dos tokés espalhados pelas árvores (uma espécie de lagarto que faz um som repetitivo semelhante ao nome que tem) e esperar pelo dia seguinte.
E no dia seguinte o sol nasce, perto das seis da manhã, um verdadeiro rei que emerge das profundezas do mar de braços abertos, brilhante como nenhum outro. Os golfinhos vêm prestar-lhe vassalagem e damos por nós a fazer o mesmo instintivamente.
Aliás, dobrarmo-nos perante a natureza e desdobrarmo-nos em vénias é a coisa que mais nos apetece fazer ao longo do dia passado no ilhéu de Jaco. Agradecer aquele mar de diferentes tons de azuis, aquela areia branca, aqueles corais que podemos tocar com as mãos, o peixe que pescaram para comermos...agradecer, agradecer e agradecer outra vez. E, já no barco de pescadores que nos vem recolher à hora combinada para atravessar a pequena distância que nos separa de Valu, olhar para Jaco e agradecer mais uma vez.
Aventura na selva
Como é que passámos das águas cálidas de Jaco para o meio de uma densa selva, até podia ser uma coisa difícil de explicar se não estivéssemos em Timor, mas em Timor é mesmo assim. Num momento estamos a beber um bom gin numa esplanada a ver o pôr do sol, a seguir já estamos a nadar com peixes, no meio dos corais, e depois vemo-nos a passar ribeiras a vau rodeados de caraus que nos olham como se fôssemos extraterrestres acabadinhos de aterrar neste planeta.
Nós próprios sentimo-nos um bocado estrangeiros neste planeta ao fazer o percurso Loré, Iliomar, em estradas muitas vezes sem saída e sem pontes, rodeados de vegetação exuberante, sem ver uma única alma ao longo de vários quilómetros, ao ponto de as poucas aldeias com que nos cruzamos parecerem irreais, como as miragens num deserto. O calor intenso, as casas típicas em cima de estacas com telhado de colmo e os habitantes deitados debaixo das casas ajudavam a criar a sensação de ilusão.
Depois, claro, há o momento em que temos de sair do carro para aliviar a bexiga, damos de caras com uma cobra amarela, demoramos a processar o facto de estarmos a 50 centímetros de uma cobra venenosa e fazemos as figuras mais tristes da nossa vida. Bom, talvez não as mais tristes, mas seguramente das que ficarão no top dez.
Não fazíamos a mínima ideia de como seria este “pequeno” trajecto de 33 quilómetros, até porque nos parece que muito pouca gente o utiliza. Um “tio” (forma respeitosa de tratar alguém mais velho) de Liquiçá, que estava a servir de motorista em Valu, confirmou-nos que era possível fazê-lo e quando chegámos a Loré a pequena povoação pareceu-nos tão pacífica, tão bem arrumada, que pensámos que dali para a frente seria só conduzir junto ao Taci mane (mar homem) da costa sul.
Não foi assim, portanto, mas pelo menos podemos dizer que estivemos dentro de uma floresta tropical a sério e que é bastante diferente daquela do Oceanário.
No coração da montanha
Instalados em Ossú, depois de nove horas metidos dentro de um carro (sim, porque em Timor as distâncias não se medem em quilómetros, mas em tempo) apetece-nos dormir, tomar banho e comer, tudo ao mesmo tempo, mas ficámos parados no meio do jardim do eco-resort a olhar em volta. A montanha parece que nos vai engolir a qualquer momento. A “mana” que vai cozinhar para nós quer saber o que queremos comer e nós queremos qualquer coisa, não interessa, a montanha parece que nos vai engolir.
Dali podemos ir para o Mundo Perdido, uma zona protegida de floresta tropical, ou mergulhar no belíssimo rio Loi Hunu, mas temos mesmo de ir ter com o comandante das Falentil, Tito da Costa Cristóvão (todos os quartos deste eco-resort têm nomes de antigos líderes da resistência). Também aqui adormecemos ao som dos tokés, mas estes não estavam nas árvores, estavam mesmo dentro de casa. São bonitos, são lagartos às bolinhas, mas bem que podiam viver lá fora, apesar de serem muito úteis a dar cabo dos mosquitos.
E amanhece. Mais uma manhã em Timor-Leste, uma manhã nas montanhas que acolheram os guerrilheiros que resistiram contra a ocupação indonésia. Atravessar o Matebien, que significa monte das almas, é como pisar solo sagrado, mais um. A igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, enorme e cor-de-rosa, rodeada de fiéis com as roupas de domingo, parece um elemento folclórico. Mas em Timor tanto se adora a Deus sobre todas as coisas, como a montanha sobre todos os deuses.
E a montanha que é a casa dos espíritos ancestrais também guarda as marcas dos homens que estão de passagem, como os japoneses que cavaram os túneis em Venilale, para guardar armas, durante a II Guerra Mundial.
Entramos nesses túneis e de repente estamos rodeados de crianças timorenses que vão chamando umas pelas outras para verem os malai. Uma delas diz-nos qualquer coisa em tétum, aponta com mão e fala aflita. Percebemos que não devemos entrar num dos túneis, porque pode desabar. Do lado de fora, um porco, que parece uma vaca, dormita ao sol.
Nós seguimos, de volta a Baucau e dali para Díli. Para trás vão ficando os cães escanzelados, as mulheres que lavam a roupa no ribeiro, as crianças que ensaboam as cabeças e os homens que passeiam, uns com galos ao colo, outros com catanas nas mãos.
Ponta Oeste

Loromonu, onde o sol se põe
Estávamos convencidos que depois de tudo o que já tínhamos visto e experienciado, no lado do sol nascente, pouco mais nos poderia surpreender no lado do sol poente, mas não podíamos estar mais enganados.
A viagem de Díli a Balibó é relativamente fácil, há bastantes troços da estrada que estão alcatroados (e, espantem-se, alguns até têm sinais de trânsito!) e oTaci feto (mar mulher) acompanha-nos em grande parte do percurso. Além disso, é possível fazer algumas paragens bem agradáveis, em Liquiçá e Maubara, para petiscar boa comida e fazer compras.
Liquiçá é, aliás, o sítio escolhido por muitos portugueses, e outros estrangeiros a viver em Díli, para passar os fins-de-semana fora da capital, ou para o almoço de domingo. O restaurante Black Rock, mesmo em cima da praia, é um grande atractivo e a vila é muito bonita, com vários edifícios portugueses, incluindo o Hotel Tokede, que, bem recuperado, seria um excelente substituto do Grand Budapest Hotel, no filme de Wes Anderson. Já estamos a ver um grande plano com os locais a atravessar a praia a caminho da missa. O lago de Maubara, uns quilómetros à frente, onde se diz que vivem  maus espíritos, também ficaria muito bem nesse filme.
Em frente ao forte de Maubara, onde se pode comer uma boa refeição e relaxar à sombra das enormes árvores, existe um pequeno mercado onde se podem comprar artigos de artesanato, como as almofadas com aplicações de tais e os famosos produtos de cestaria, feitos com a folha da palmeira,  que tanto servem para fazer cestos (e espanta-espíritos, chapéus, bijutaria e por aí fora), como para extrair a seiva com que se faz o tua mutin, uma espécie de vinho bastante intragável.
Parece um contra-senso que nestas duas pacatas vilas tenham acontecido batalhas sangrentas em diferentes períodos da História. Em Maubara no século XIX, com a revolta dos reinos contra a governação dos portugueses; e em Liquiçá, uns meses antes do referendo de 30 de Agosto de 1999, para a Independência de Timor-Leste, onde um grupo de milícias indonésias atacou uma igreja e chacinou um número indeterminado de timorenses, sobretudo crianças e idosos.
Silêncio que se vai pôr o sol
De volta à estrada, até Batugadé, que faz fronteira com a Indonésia. Acaba aqui, portanto, o Timor que fala português, ou que quer falar português. Na verdade não acaba completamente, porque do outro lado, a pouco mais de 100 quilómetros da fronteira, encontra-se o enclave de Oecussi, que foi, aliás, onde os portugueses atracaram quando chegaram a esta parte do mundo e que por estes dias se encheu de festa para comemorar os 40 anos da Declaração da Independência e os 500 anos da chegada dos portugueses.
Mas nós não vamos a atravessar a fronteira, seguimos para Balibó, uns 14 quilómetros mais à frente. De Balibó sabíamos apenas que o forte construído pelos portugueses, no século XVIII, estava transformado numa pousada com muito boas condições (depois de tantos quilómetros de estrada, num país com poucas infra-estruturas, a estadia passa a fazer parte dos pontos de interesse) e do massacre que ficou conhecido como “The Balibo Five”, por causa dos cinco jornalistas que foram assassinados pelos indonésios.  Há um pequeno museu dedicado a estes jornalistas, no centro da vila, que quisemos espreitar.
Parece-nos que eles teriam gostado de passear pela vila connosco, teriam gostado de ver as crianças timorenses a jogar xadrez, com regras inventadas por elas, de ver as nossas crianças a profanar uma árvore sagrada e até de entrar nas grutas connosco, apesar de, certamente, já as terem visto muitas vezes. Enfim, teriam gostado de ver que as pessoas têm uma vida normal. Uma vida difícil, muitas delas, mas sem terem que viver escondidas e com medo de serem as próximas vítimas.
Reina a calma, portanto, mas é quando anoitece que notamos o silêncio absoluto. Não é um silêncio igual aos outros silêncios, é muito mais silencioso. Parece que nem os bichos querem perturbar a paz. Em Ataúro, o silêncio parecia ser forçado pelo isolamento, mas aqui existe uma certa solenidade, como se montanha dissesse: silêncio, que se vai pôr o sol. E faz-se silêncio absoluto.
E essa solenidade vai-se impondo amiúde no resto da viagem pelas montanhas da cordilheira central, que inclui o Pico do Ramelau, o ponto mais alto de Timor-Leste, que é para os timorenses o “monte avô”, e que nós, infelizmente, não subimos.
Vai-se impondo quando saímos de Maliana até Bobonaro e temos de parar várias vezes para apreciar a inacreditável paisagem, e depois quando descemos até B’ee Manas (fonte de água de quente), em Marobo, e levamos com o monte Cailaco em cima.
É óbvio que para lá chegar tivemos de ultrapassar algumas dificuldades, mas parece-nos que esta coisa de se fazer de difícil é um dos encantos deste país. Sobretudo porque, à partida, haverá sempre alguém disposto a ajudar-nos, como as meninas que não nos compreendiam ou o catua (idoso), que seguia muito direito, impecavelmente vestido de camisa branca e um tai colorido à volta da cintura.
Enfim, conseguimos chegar à àgua sulfurosa (e, mesmo assim sagrada), mas não somos capazes de tomar banho. Além de ser demasiado quente, o cheiro a enxofre é muito intenso — nada que incomode os timorenses que lá estão a banhar-se, ou a lavar a roupa.
Um pouco mais acima somos impelidos a parar para explorar as ruínas do que noutros tempos parece ter sido um hotel, e que naquele enquadramento se assemelha um castelo dos contos de fadas. Talvez a Bela Adormecida seja daqui. Talvez alguém possa acordá-la para fazer alguma coisa por este reino — e pelas meninas que nos tentaram ajudar há uma hora e meia e que continuam a caminhar quando nos voltámos a cruzar com elas. 
Na Terra do Nunca
Correndo o risco de estarmos a exagerar nas alusões às histórias infantis, é inevitável não comparar as coisas que vimos no percurso de regresso a Díli pela meio da montanha, em direcção a Ermera, às imagens que temos das histórias de encantar.
Tínhamos sido avisados, pelo guia da Lonely Planet: “You’ll be alone with your own thoughts and the striking (and times arid) landscape.”  Impressionante é um bom termo para descrever a paisagem. Ou a sensação de mergulhar nas cascatas de Atsabe, rodeados de montanha por todos os lados, e de pequenos timorenses que vieram ver os malai a nadar.
Mas é já depois de Atsabe, a caminho de Ermera, que a paisagem se torna mesmo indescritível. Quando não estamos a atravessar cafezais (se estivéssemos no tempo da apanha do café, era só abrir a janela e colher grãos dele, assim como fazemos no Fundão com as cerejas), estamos a atravessar florestas de árvores enormes, com os troncos rodeados de “ninhos”, que depois percebemos serem, afinal, outras plantas a crescer dos troncos  e que dão a sensação que a qualquer momento pode saltar de lá um dos “meninos perdidos” do Peter Pan. Ou então estamos a olhar para um vale de árvores de copa redonda e achatada como uma folha de papel, as “madres del cacau”, que cria a ilusão de estarmos a ver uma enorme mesa, decorada com a mais fina toalha de crochet.
Neste ponto da estrada, estamos a 2100 metros de altitude e passamos por dentro da nuvens.  Talvez as nuvens tragam pó mágico e façam com que tudo à nossa volta pareça inebriante. Ou talvez este sítio, este país, seja mesmo mágico.

GUIA PRÁTICO
Quando ir
Na época seca, entre Maio e Outubro, mais mês, menos mês, que isto das alterações climáticas parece que também já afectou Timor.
Como ir
Há várias hipóteses e há muitas equações a fazer. A opção mais vezes adequada é voar com a Emirates, sendo o percurso Lisboa-Dubai-Singapura, ou Bali. Mas há voos para Singapura pela Swiss Air (Zurique), Air France (Paris) ou KLM (Amesterdão). A Qatar também voa para Bali mas para isso temos de ir a Madrid ou Londres, entre outras opções. Por norma, voar de Bali para Díli é mais barato do que de Singapura. Para qualquer dos casos, a Air Timor é a melhor opção. Os preços variam muito. Mas a viagem completa pode custar, com sorte, 1200 euros.

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