quarta-feira, 15 de março de 2017

Sri Lanka: uma lágrima, dez praias e mil sorrisos



A escuridão descia sobre a terra e sobre as nossas cabeças o céu nocturno de Uppuveli iluminava-se de todas as estrelas. Retalhos de uma luz ténue dançavam no rosto da mulher que se sentava à minha frente, um rosto bronzeado e sulcado de rugas como alguns dos caminhos, depois das chuvas, que me conduziram até uma casa onde, numa noite como esta, silenciosa, escuto o rumor do mar e deito de vez em quando um olhar ao casal de crianças que dividem o tempo entre os trabalhos de casa e um desenho para mim ou para a mulher de cabelo curto e olhos verdes que me faz companhia.  
- Quando casei, já tinha um filho, resultado de um acidente, de uma noite romântica numa praia para onde fôramos com o pretexto de celebrar o Midsummer, porque em Oslo não se festejava, era tudo muito aborrecido. Ele chamava-se François, escapara ao regime de Franco. Não me pergunte como, mas ele chegou à Noruega pouco antes de completar 15 anos, à procura de uma amiga que conhecera, uma funcionária das Nações Unidas.

Já antes apreendera o humor com que me relatava algumas das suas experiências de uma existência feita de múltiplas viagens. Imaginava que, depois do lado dramático de mais um relato, algo capaz de me fazer rir com vontade estaria a caminho. Como se ela, já contagiada pelo sorriso eterno do povo, personificasse a história recente do país, erguendo-se depois de guerras e catástrofes naturais.
- Ao fim de algum tempo descobri que ele tinha problemas, que bebia muito e, mais do que isso, que não podia ser um pai. Nessa altura, eu era enfermeira e, uns anos mais tarde, outra vez grávida, casei com um médico que aceitou adoptar o meu primeiro filho.
Ela esboça um sorriso que é um prenúncio das palavras humoradas que estão a chegar-lhe aos lábios.
- O meu marido era, já nesse tempo, um médico conceituado, para quem os pacientes estavam acima de tudo. Disse-me que não podia ir de lua-de-mel comigo, que não tinha tempo. No início, ainda pensei que não o devia levar a sério. Mas quando dei por mim já estava sentada num avião, a caminho da Grécia, com a minha irmã, o meu filho e grávida de outro. Ainda hoje acredito que sou um caso raro no mundo, a única mulher que foi de lua-de-mel com a irmã, um filho pela mão e outro na barriga.



Randi Nilsen passa quatro meses por ano no Sri Lanka, numa casa alugada, a meia dúzia de passos da guest house onde me encontro, em Uppuveli, e da praia que espero ver amanhã, quando o sol se levantar, aclamada como uma das melhores na região de Trincomalee e de volta aos seus dias de paz após anos e anos de conflitos.
- Caminha até ao final, para a tua esquerda, há uma aldeia de pescadores muito bonita, cheia de cor, do outro lado do rio.
Randi Nilsen regressa a casa, para terminar mais um esquema de palavras cruzadas que depois enviará para uma revista de saúde norueguesa. Haveremos de nos encontrar mais vezes nos próximos dias, para rir como se ri no Sri Lanka.


Nada mais se deseja

Mal acordara daquele sono profundo e retemperador, ainda aos primeiros alvores do dia, e deixei os meus passos levarem-me na direcção de onde vinha o rumor das ondas. Para quem, como eu, acabara de chegar de Jaffna, dessa cidade inacessível durante a guerra, Uppuveli surgia, mesmo sob nuvens baixas e cinzentas, como a primeira praia que realmente cativava o meu olhar, embora por vezes distraído mas quase sempre inquiridor. O sol procurava, já com alguma força, romper por entre aquele cortinado que não ameaçava chuva, um quadro tão do agrado das vacas indolentes que me olhavam com indiferença e menos dos poucos turistas que, a estas horas madrugadoras, estendiam as suas toalhas sobre as areias que acolhiam tudo o que o Índico rejeitara ao longo de uma noite em que namorara a praia.



Caminho, seguindo o conselho de Rami Nielsen, para a esquerda; para a direita, como uma varanda sobre o mar, avisto uma elevação que deve ser um miradouro com uma panorâmica soberba sobre a grande extensão de areia de Uppuveli; no final, identifico uma forte corrente de água que não me convida à travessia mas um barco pequeno aproxima-se, com dois homens em pé que parecem perscrutar nos meus olhos uma necessidade de consolo, talvez um pouco semelhante à de um náufrago — encostam a embarcação o mais que podem à margem e incitam-me, com gestos e sem palavras, a saltar para o interior, para me levarem até ao outro lado, onde a vida ganha mais vida e, como garantira a norueguesa bem-humorada, mais cor.

Há barcos ancorados, outros a chegar, outros ainda a partir; uns descarregam grandes quantidades de peixe, alguns partem para a pesca, mas a maior parte lança-se aos perigos do mar pouco depois da meia-noite e volta entre as seis e as sete da manhã — e todos os barcos, mais modernos ou mais primitivos, estão pintados de tonalidades que prendem o olhar. As palmeiras, com os seus troncos esguios e as suas folhas, reflectem-se nas águas como num espelho; contra o céu, cada vez mais azul, recorta-se, numa estabilidade precária, um pescador solitário e, ainda mais para lá, quase sobre a linha do horizonte, um cargueiro sulca as águas cada vez mais prateadas do imenso oceano.
Um caminho, em parte alcatroado, em parte em terra batida, bordejando o riacho que serve de porto de abrigo aos barcos e aos pescadores, conduz-me até um pequeno bar de paredes escurecidas e despidas; logo atrás, o mercado fervilha de vida, os vendedores, curiosos face à presença de um único turista, desviam os olhares das balanças rudimentares onde pesam o peixe para me observarem antes de me sorrirem, como quem, ao fazê-lo, aceita a minha presença. Homens com a água até à cintura, por vezes de lenço na cabeça para se protegerem do sol que já promete incendiar tudo à sua volta, atiram as suas redes e olham para aqui e para acolá de uma forma sonhadora ou apenas ausente.



O mar, esse monstro

Sou obrigado a um desvio de muitos quilómetros, de Pottuvil a Monaragala, de Monaragala a Hambantota e, finalmente, outra vez tendo o mar como vizinho, chego a Tangalla, a meio de uma tarde que ainda me oferece algumas horas de sol. Sentado numa esplanada, ouvindo o som das vagas, deixo que o dia decline sobre a praia de Medaketiya.
Quando a manhã desperta, anunciando mais um dia glorioso, caminho ao longo de Medaketiya, detenho-me na lagoa, na parte da praia decorada com mais barcos, volto a ajudar os pescadores a colocarem as suas embarcações em zonas mais abrigadas; assisto a todo aquele frémito de vida e inspiro as fragrâncias que anunciam a proximidade do porto de pesca e do mercado de peixe, onde tomo café com os pescadores antes de passar pela Rest House, em tempos ocupada por administradores holandeses, e de me entregar à tranquilidade de praias como a de Goyambokka e Marakolliya.



Durante uma semana fico instalado em Galle, a cidade que me serve de base para conhecer algumas das mais inspiradoras praias do sul da ilha. Um dia, vou um pouco para norte, até Hikkaduwa, descoberta pelos hippies na década de 1970 e perfeita para quem se está a iniciar no surf; a maior parte do tempo, recorrendo ao mitíco comboio que liga Galle a Matara, uma linha arrancada pelas ondas do tsunami, passo-o na zona leste, em paraísos como Polhena, a escassos três quilómetros do centro de Matara, onde a vida decorre sem pressa, em Mirissa, mais ídilica ainda e tão próxima de Weligama, onde gosto de me sentar, num rudimentar banco de madeira, olhando os pescadores, as vacas, os surfistas, a minúscula ilha mesmo à minha frente, a Taprobana, refúgio de artistas e escritores, como Paul Bowles, que aqui, neste lugar onde se pode dormir por um pouco mais de mil euros, escreveu The Spider’s House nos anos 50 do século passado.

Ando muito tempo a pé, sempre junto ao mar, esse mar onde as crianças e os adultos passavam muito do seu tempo, mesmo não sabendo (como a maior parte da população) nadar, esse mar que a determinada altura passaram a ver com um monstro que rouba vidas e empregos, destrói casas e deixa milhares e milhares sem um tecto; faço companhia a pescadores, a três crianças de olhos negros e brilhantes que se banham nas águas revoltas do oceano, descubro a excelência da baía de Unawatuna, mais uma praia para sonhadores, percorro-a de uma ponta à outra, aprecio-a do alto de um promontório e, uma vez de regresso às suas areias, inicio uma caminhada mais longa que me irá levar, ao fim de algum tempo, a uma das praias mais isoladas, a Jungle Beach, onde me limito a deixar o tempo passar como se dele nada mais esperasse. Deito os olhos a um mapa, a essa forma de lágrima, procuro localizar as mais belas praias por onde errei ao longo de semanas e a recordação mais vívida que me chega à memória é a de todos os sorrisos que fizeram o favor de me oferecer nesta ilha com tantas lágrimas derramadas.


Pode ver aqui as nossas sugestões no Sri Lanka. 


Fonte: Fugas - Público

Sem comentários:

Enviar um comentário