terça-feira, 2 de outubro de 2018

A Raquel foi à Austrália. E conta-nos tudo! - Parte 1

A Austrália é um dos destinos mais longínquos. É um país e um continente ao mesmo tempo. E estava há tempo na bucket list da Raquel. A Raquel é uma das viajantes por detrás da Travel Tailors. O seu desejo de conhecer o Mundo despertou e nunca mais parou. E é esse desejo que também fez nascer a Travel Tailors. Mas isso será uma história para outro dia.

Hoje falamos da Austrália pelos olhos da Raquel. E com as palavras dela.

Anoitece em HK e nós partimos

Que dizer de Hong Kong? Foi graças a ela que mudei para sempre e comecei a perseguir o sonho de ver mais do Mundo. Quem sabe se outra cidade mais próxima e fácil teria produzido tal faísca? Revivi-a, por isso, intensamente e sem um pingo de paixão a menos. É uma cidade muito rápida, intransigente, mas livre e sem falas mansas. E isso dá o descanso que advém da franqueza recíproca. Mas se o facies de HK mantém a matriz da minha memória, Macau foi completamente desfigurada. Mas os cantinhos portugueses estão estimados, talvez mais até do que há 25 anos. E por isso saio destas paragens com carinho, com gratidão e, mais prosaicamente, sem quaisquer dores de costas!

A primeira semana na Austrália

Dia 1 - Melbourne



Excelente visita guiada, a da manhã: Arcades and Lanes (arcadas e ruelas). Ativemo-nos a um rectângulo pequeno da cidade, mas com histórias elaboradas sobre cada espaço. Entrámos nalgumas lojas e cafés, ouvimos alguns proprietários, vimos coisas invulgares. Aliás, Melbourne é invulgar. Não tendo trunfos arquitectónicos ou paisagísticos notáveis, fez da combinação de individualidades extravagantes a sua grande atracção.







Nota-se o espírito boémio, artístico, fora do baralho. De tão incomum, não posso dizer que fosse cidade onde viveria – fez-me sentir banal (e sem culpa). Mas merecia garantidamente mais 2 ou 3 dias inteiros. Fomos visitar a impressionante biblioteca estatal, um colosso cheio de gente – impressionante testemunho de que uma biblioteca pode ser um espaço atraente e concorrido. E, ao fim da tarde, a Bárbara mostrou-nos a universidade onde trabalhava e levou-nos à praia de St. Kilda, onde vimos os pequenos pinguins a passear já de noite. Por esta não esperávamos. Terminámos com um pho vietnamita quentinho.

Dia 2 - Melbourne – Great Ocean Road (12 Apóstolos / Loch Ard) – Melbourne

Ah, o marketing, que fez desta estrada só raramente costeira (a despeito de nome tão enganador) a epopeia de viajantes e condutores rumo à Meca do estilo de vida australiano, essa incógnita tão celebrada e tão exagerada.

Coisa minha; eu cá embirro com gente demasiado descontraída e com surfistas em particular. A Great Ocean Road tinha quase tudo para não me dizer nada. Mas se se vende! Pois que havia que vê-la.
Os guias falam do interesse de Torquay e mais umas terreolas viradas para o surf, mas são honestos ao dizer que a estrada só se torna interessante de Lorne em diante. Verdade verdadinha. Aí sim, o verde das colinas com vacas a pastar derrama-se num Pacífico iluminado por um sol muito dourado, a água ronceirinha à estrada sem sobressalto, algumas falésias de impressionar e muito poucos viajantes em trânsito. Por ser Inverno, aproveitam para fazer algumas reparações na estrada, tornando a viagem mais lenta. Tinham-nos dito que havia koalas em Kenett River, e havia mesmo. Encontrar o primeiro foi fácil, porque havia turistas parados a olhar, mas avistar os seguintes foi mérito nosso, porque era preciso subir por um carreiro inclinado (fomos a pé). Estavam muito enrolados a dormitar no topo das árvores.




Mas a maior surpresa foi, já no regresso e sem qualquer ideia de que os haveria por ali, ver um canguru a trincar uma erva tenra, saído do nada, a muito poucos metros de nós. Ficámos incrédulos e com um sorriso de orelha a orelha.



Prosseguimos a viagem com o dia já meio ganho. Pouco depois de Apollo Bay, a estrada guinou para dentro e atravessou umas florestas de respeito, seguindo-se uns prados alpinos de total sossego. Foi quase 5h depois do início da longa viagem que alcançamos os 12 Apóstolos. De onde teria saído tanto asiático frenético, não saberíamos dizê-lo, já que o nosso caminho de ida fora tão desacompanhado de carros. E os helicópteros não podiam levá-los a todos. Contra a maralha, conseguimos fazer o passadiço até ao miradouro. O sol estava contrário às rochas, mas a vista para o lado oposto não era menos bonita. Fomos ainda espreitar as estalagmites de Loch Ard Gate (também pejado de turistas).

Em epílogo, descreveria este passeio como uma combinação dos Açores, da Irlanda, das falésias de Sagres e da marginal entre a Boca do Inferno e o Cabo da Roca.

Dia 3 - Melbourne – Hobart – Tarraleah

Tomámos o pequeno-almoço e despedimo-nos da Bárbara. Voltámos a encontrar um trânsito intenso. Achámos que tínhamos chegado ao aeroporto demasiado em cima da hora, mas depois o voo atrasou quase 1h. Chegando a Hobart, depois de atendidos por uma empregada do rent-a-car que nos prodigalizou recomendações e piadas amáveis (talvez das poucas pessoas que achei genuinamente simpáticas das interacções até à data), começámos a condução na esperança de comer em qualquer sítio sossegado e despretensioso que aparecesse no caminho. Mas isso foi coisa que não se vislumbrou espontaneamente. O que havia, isso sim, era uma auto-estrada incrivelmente cheia de trânsito, nada condizente com a minha ideia da Tasmânia. Eram 2h da tarde e tínhamos fome. Saímos aleatoriamente da auto-estrada e alegrámo-nos com uma placa que tinha o símbolo informativo de restaurante. Estava ao virar da saída, era o melhor e o único. Por fora parecia uma taberna sombria, mas por dentro tinha uma empregada álacre que foi comover o chef (a cozinha já tinha fechado) e, no piso de cima, uma sala bonita e luminosa com vista para o lago. Comemos peixe e lulas panados que nos souberam pela vida, com uma boa cerveja. A televisão passava o que parecia ser bingo, a que ninguém ligava. Um grupo de 4 reformados bebia uma garrafa de vinho e falava, em voz baixa e ritmo animado, de coisas que me fizeram pensar que eram reformados bastante mais interessantes do que aqueles que já tinha ouvido em cafés lusos. Havia talvez mais 2 ou 3 homens solitários sentados pela sala, já de idade, um deles falando com a empregada ao balcão. Retomou-se a condução, liberta do trânsito intenso que enxameava Hobart e arredores. Localizámos um supermercado na navegação online e foi de grande sensatez parar e fazer compras. A partir daí estaríamos em auto-aprovisionamento, ficando em alojamentos com cozinha, e não havia mais nada (mesmo nada) nos próximos quase 100kms onde pudéssemos abastecer-nos. Fui estarrecendo com os preços e ficando contente por poder cozinhar e não ter que depender de restaurantes caríssimos (a havê-los, claro). A paisagem evoluiu para campos com floresta densa em pano de fundo, para colinas áridas, de árvores esparsas e anãs, gado calado, ausência de marcas humanas e um sentimento de fim do mundo, vagamente inquietante, mas também libertador. A terra onde pernoitaríamos tinha sido estância de trabalho de uma central hidroeléctrica, abandonada nos anos 30 e reanimada por um único proprietário que aproveitou os chalets dos engenheiros e as humildes casas dos trabalhadores para o turismo. Uma aldeia fantasma, que mais fantasma era neste dia, já depois do crepúsculo. A recepção não funcionava no Inverno, por isso as nossas chaves e instruções estavam num envelope com o nosso nome dentro de uma caixinha à porta da recepção. Tinham prometido que a nossa cabine à beira do lago teria patos amigáveis, e assim era. Havia 5 patos (que mais pareciam gansos) a grasnar em procissão à nossa porta. De resto, haveria talvez mais 2 cabines ocupadas numa área muito grande. O sossego era absoluto, não havia rede de telefone a não ser de uma operadora e nada de internet. O directório era muito completo, contava a história do local e falava de fauna e flora selvagem para apreciar em vários trilhos. Tinham deixado o aquecimento no máximo para nós, pelo que se estava muito bem, a tomar banho quente, a fazer o jantar cheio de vegetais e a saboreá-lo sem preocupações. Merecidamente, dormimos cedo. Notas paralelas do dia: A empregada do piso de cima do restaurante onde almoçámos era, conforme o padrão que começávamos a perceber, rápida a falar e desconcertantemente hábil a misturar palavras de extrema e calorosa amabilidade, com um semblante de indiferença enquanto as pronunciava. Usava de um desprezo quase teatral a falar do patrão. Também à semelhança de outras que nos foram atendendo, tinha o cabelo cor de palha e a pele já vincada à volta dos olhos, embora não sendo velha. As fórmulas de cortesia, longas e desveladas, usadas genericamente com poucos sorrisos nos serviços, em vez de derreterem, criam desconforto nesta turista portuguesa, a quem tamanha hiperbolização vocal parece um enxerto mal feito da deliciosa e alegre simpatia irlandesa.

Dia 4 - Tarraleah – Cradle Mountain


De noite choveu pesadamente, mas de manhã o sol pôs-se em vantagem sobre o frio. Os patos tinham desaparecido, mas as aves começavam o dia com energia e cores surpreendentes para uma ilha de clima temperado. Saímos à procura dos quolls (havia um trilho específico para quolls, que pelas descrições eram os menos noctívagos do leque de animais selvagens da zona). Contornámos o lago, usámos umas pontes específicas para ultrapassar vedações de arame farpado e começámos por espreitar as vacas escocesas, muito peludas, à mistura com uma ovelha e uma cabra. Um grande boi de enormes cornos estava mais perto da estrada, mas ocupava-se a coçar o pescoço de pêlo enriçado num tronco de arbusto seco, cujas pontas afiadas lhe davam alívio. Mal entrávamos no trilho para dentro do bosque e já víamos um wallaby a retoçar a erva. Quando fomos caminhando, fomos vendo mais, fugidios. O bosque era sombrio e musgoso, um encanto de solidão e silêncio. Não vimos quolls. Depois desta caminhada, descobrimos que havia seres humanos na recepção, mas já de saída. Conduziu-se em direcção à costa oeste. A paisagem evoluiu entre bosques, lagos, prados, estepes mais rasteiras, vistas de montanhas cumeadas de neve, uma povoação mineira de ar desolado mas com um surpreendente número de alojamentos quando comparada com as outras localidades que atravessámos. Parámos nas Cascatas Nelson, que se alcançavam por um trilho muito bem cuidado e bonito, ao longo de um rio sossegado e com várias placas pedagógicas. A cascata estava pujante no seu Inverno. E sem ninguém, no nosso Verão. A pequena cidade costeira de Strahan, encastrada entre braços de mar, vinha gabada num dos guias que lemos mas, além de estar praticamente em hibernação, estava a ser brindada pelos primeiros chuviscos do nosso dia. O outro livro de viagens dizia que aqui tudo era artificial e caro, da gasolina ao pão. Talvez por ler isto e por se pagar todo e qualquer lugar de estacionamento, mesmo em clima frio e época turística deserta, parámos num snack à beira da estrada, um pouco mais à frente, onde uma senhora larga, que não compreendeu o meu pedido de salmão grelhado a não ser à terceira, nos serviu comida bastante reconfortante. Fomos ao supermercado reforçar provisões para os próximos dias. Os avisos dos guias eram sérios sobre a escassez de oferta para as bandas que buscávamos. A partir daí, choveu sem parar todo o caminho até Cradle Mountain. Nos últimos 50kms vimos talvez mais carros juntos, em sentido contrário ao nosso, do que nas últimas 24h (seriam as 4 da tarde, a cair para a noite). Chegámos de novo com a recepção fechada e o envelope com chave e instruções numa pequena caixinha. Ao contrário de ontem, ainda havia muita gente por chegar, a avaliar pelos vários envelopes. A nossa cabana, sóbria por fora, era uma delícia de comodidade por dentro. A lareira estava acesa, o espaço estava inteligentemente distribuído e nada de mais agradável me podia ocorrer para passar esta noite fria e chuvosa no coração da Tasmânia. Notas paralelas do dia: Há dezenas de animais mortos pelos carros nas bermas das estradas. Os guias de viagem recomendam arrastá-los para a berma em caso de atropelamento mortal para não constituírem perigo para os condutores seguintes. Se ainda estiverem vivos, dizem para se chamar os serviços de socorro especializados. Faz aflição. Há avisos de trânsito profusos e geralmente humorísticos, ainda que severos – sobre sinistralidade, cansaço ao volante, linhas do comboio paralelas à estrada (!), multas e outras preocupações que parecem estranhas em estradas tão vazias. Cada terrinha, por mais insignificante, esmera-se no marketing. Se não tem beleza, se não tem um passado elegante, homenageia os trabalhadores que aqui desbravaram territórios, ergue-lhes memoriais, faz museus, conta histórias, em suma. E qualquer banalidade ganha a sua eternidade, ao serviço de locais e visitantes. Há uma verdadeira obsessão com a inscrição da origem australiana nos produtos. Primeiro pensámos que fosse só nos alimentos, mas depois começámos a ver a alegação bem visível também em lavatórios e fornos. Quem não pode dizer que é australiano, feito com ingredientes australianos, com mais de 90% de composição australiana, é bom que diga que é orgânico. É a única possibilidade alternativa de escapar com vida do julgamento moral do consumidor. Que esta gente aqui é muito susceptível às origens.

Dia 5 - Cradle Mountain

Tínhamos combinado levantar-nos quando raiasse o dia, mas deixámos chover copiosamente e enterrámo-nos sob as mantas, em negação do gelo que estava na cabine, até perto das 9 (ontem desligámos o aquecimento por precaução, mas de manhã estava de se bater o dente). Fizemos muito bem – depois do pequeno-almoço, não choveria mais o dia todo e, de tarde, pôs-se um sol bem bonito.


Este parque natural tem as infraestruturas para caminhadas mais democráticas que conheço. Há trilhos de muito curta duração, alguns apropriados para cadeiras de rodas ou membros da família de todas as idades passearem juntos, trilhos de meio-dia (com 3 horas em média), trilhos de dia inteiro e trilhos para vários dias seguidos. Até no Inverno há quem faça o overland de 6 dias que vai daqui ao Lago St. Clair (ainda hoje de manhã partiu um grupo). Todos os percursos estão bem marcados, ou em passadiços de madeira revestidos de rede de galinheiro para não se escorregar, ou em gravilha batida. E há um autocarro gratuito de 15 em 15 minutos, que leva os utentes desde o centro de recepção dos visitantes até ao início de cada ponto das caminhadas, que aliás têm ligação entre si, permitindo andar ou interromper o caminho ao ritmo e possibilidade de cada um. O motorista dava, na ida, um chorrilho de explicações bem-humoradas (embora com a cadência de um relato de futebol, o que para os ouvidos menos preparados para sotaques, como os meus, reduz alguma da informação apreendida). Nunca vi uma organização assim, e tenho andado por aí.

O nosso passeio começou por contornar o Lago Dove, do qual se avistaria, em boas condições climatéricas, a forma de quarto minguante da montanha (apodada de Montanha do Berço, também pela sua forma). Tivemos vários lampejos, se não limpos, pelo menos completos. O trilho evoluía entre paisagens mais e menos densas de vegetação húmida, musgo, líquenes, cascatas. Havia alguma gente, mas estava-se muito à vontade.
Ao fim de 2 horas, apanhámos o autocarro para o próximo ponto de caminhada, com a grande motivação de ver wombats (o motorista tinha apontado para um na encosta daquela zona, na ida). Começamos por almoçar as sanduiches que tínhamos, embora sob escrutínio ameaçador de um bando de corvos locais, que foram saltitando até ao topo da nossa mesa e do banco de madeira onde estávamos sentados. Quando íamos subir uma encosta para ver melhor um wombat que estava no cimo da colina, deparamos com um pertíssimo de nós, a caminhar na passadeira para os trekkers, extremamente roliço e seguro de si. Pudemos observá-lo com toda a calma enquanto ele passava, imperturbável, por entre alguns turistas de boca aberta e máquina fotográfica em riste. Fizemos calmamente a caminhada de regresso, através dos passadiços, encontrando mais alguns wombats a pastar e vendo paisagens muito variáveis, dos tufos rasteiros ensopados na água do degelo, a pequenos bosques druídicos onde a luz mal entra e o musgo grassa com encanto. Numa das paragens, completámos a observação da fauna com wallabies sorrateiros. Percebo o que disseram os meus clientes: depois de ver estes animais ao ar livre no seu ambiente natural, ninguém quer ver mais reservas ou visitas organizadas. O motorista que nos levou viu-nos caminhar na berma, na derradeira subida e, embora não fosse uma paragem oficial, parou simpaticamente para nos dar boleia. Ficámos muito gratos. Agora temos preparada uma visita aos diabos da tasmânia – sim, numa reserva, mas há que considerar que os bichinhos estão em extinção. São peludinhos, bonitos mas realmente ferozes. Numa visita guiada muito competente, ficámos a perceber porquê. E também vimos quolls de diferentes variedades, para uma grande barrigada de fauna explicada.

Que dia soberbo.
Para algumas pessoas, a ideia de descanso é estar numa ilha tropical. Eu troco bem os mosquitos, a areia, o calor pegajoso, a música indesejável e os outros hóspedes boçais, por este Inverno espaçoso, esta natureza intacta, este civismo de pasmar na relação com essa mesma natureza, uma cabana com lareira ao fim do dia e sopa quente a fumegar no prato com vegetais frescos descascados por nós.


Continua...

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