terça-feira, 9 de outubro de 2018

A Raquel foi à Austrália. E conta-nos tudo! - Parte 2

A Raquel há muito que queria ir à Austrália e já começámos a contar a fantástica viagem de descoberta que fez. A Raquel é uma das viajantes por detrás da Travel Tailors. O seu desejo de conhecer o Mundo despertou e nunca mais parou. E é esse desejo que também fez nascer a Travel Tailors. Mas isso será uma história para outro dia.

Hoje voltamos a falar da Austrália pelos olhos da Raquel. E com as palavras dela.

A semana do meio na Austrália

Dia 6 - Cradle Mountain - Freycinet


Para hoje previa-se neve na montanha. Não chegámos a vê-la. Para leste, a paisagem adoçou-se em planícies cultivadas, até Launceston, a capital do Norte (com interesse, ruas antigas e gente sem frio nas ruas onde chovia) e, ao lado, Everton (muito gabada nos guias, não percebemos porquê, mas comemos num pub acolhedor com ar antigo, sendo que os menus de peixe e não só recaem invariavelmente nos fritos). Antes de cair o sol, caminhámos na praia assim que chegámos à baía de Freycinet, apreciando o frio e o sol muito baixo e fulvo que tudo requintava. O resort era fino, mas estava em obras barulhentas que só se calaram depois do pôr-do-sol, a cabine "simples" de madeira tinha presunção mas não tinha vista e, talvez por causa disso também (e do menu com pratos a mais de 30 Euros), fomos comprar mexilhões ao natural e sopas de juntar água a ferver ao supermercado, mais uma tarte de maçã caseira que mereceu todos os elogios que o lojista lhes dirigiu, com um vinho local nada barato mas um nome bonito, e foi este o jantar ao nosso gosto e que nos satisfez perfeitamente.

Dia 7 - Freycinet - Hobart


Acordámos antes do raiar do dia para ir ver o sol do miradouro. Que sorte de dia, com tanto sol! O cruzeiro na baía de Freycinet pareceu quase estival. As pessoas eram sossegadas e o avistamento de diferentes aves, focas, golfinhos, para além dos originais penhascos de granito que emolduravam as falésias, e a água cor de Arrábida, foi agraciamento de turista em dia afortunado. Não havia generosidades de serviço (nem uma água ou chá eram oferecidos, e aquilo a que chamaram almoço media-se por cova de dente de leite), falava-se demais, sem pensar nos estrangeiros, sem completar o parlapié com apoio escrito que muito teria ajudado à compreensão, mas os olhos saborearam muito. Hobart sugava gente pelo rio, pelas pontes. Chegámos após o crepúsculo. Lá fora todos se recolhiam, e nós fizemos o mesmo.

Dia 8 - Hobart - Sydney


Saímos cedo e a gravidade escura da Praça de Salamanca, usada em contra-senso com fins de folia, ainda só tinha trabalho de bastidores, como cargas e descargas. Chuviscava, por vezes chovia mesmo. Pensei nesta como numa cidade dinamarquesa cujo nome já não recordo, compacta, com o seu comércio suficientemente variado mas sem nada de marcante, pessoas não muito alegres, um ou outro apontamento de irreverência na arte urbana. As ruas do centro tinham as suas lojas, as suas arcadas, uma ou outra originalidade. A zona portuária transbordava de história contada e tácita, narrada e adivinhada, de quem aqui desembarcara proscrito. The Battery tinha moradias adoravelmente guarnecidas com um conforto discreto que se entrevia pelas janelas e os seus jardins, cuja riqueza falava exclusivamente através da decência do seu cuidado. Antes de partirmos do aeroporto, caminhámos ainda longamente no areal de Nine Mile Wave, onde reformados e cães esticavam as pernas na imensidão serena da praia de inverno, juncada de conchas de vieiras perfeitas. Uma onda comprida, regular e pequena caía com um estrépito desproporcional ao seu pequeno tamanho. Daí a um par de horas, Sydney iria sacudir-nos com a sua muita, muita gente apressada, os seus arranha-céus autoconfiantes, alguns bonitos edifícios de antanho isolados na vertigem do progresso. Aqui havia muito mais caras de diferentes etnias, ouvidos melhor treinados para sotaques forâneos, o fascínio e a contradição de uma metrópole enorme e carismática. Outra dimensão, em tudo.

Dia 9 - Sydney


O nosso condutor parecia apreensivo com os horários. Inicialmente circunspecto, o Sr. Graham revelaria virtudes: uma fala pausada, com uma pronúncia acessível ao ouvido mais duro de qualquer estrangeiro minimamente familiarizado com o inglês; um humor fino e inesperado; e um conhecimento valioso para o ignorante. Foi assim a nossa confortável visita guiada da manhã a Sydney, passando pelos pontos célebres além-mares e também por outros puramente desconhecidos do nosso lado (como a roulotte famosa, a zona dos vícios, os penhascos dos suicidas e a história do homem que salvou mais de 160 vidas ao convidar para conversar pela noite fora, na sua casa ali ao lado, quem deu mostras das suas intenções nefastas). A visita terminou em Darling Harbour, onde passeámos um pouco antes de ir almoçar com o meu parceiro australiano. Foi muito interessante conhecer o escritório e algumas pessoas com quem me correspondi em fuso horário diagonalmente oposto durante anos. O David foi uma boa companhia de almoço e tinha um cérebro notavelmente organizado, porque pouco tempo depois da visita mandou-me um email cobrindo todas as questões que tinham sido abordadas na conversa. De tarde fomos explorar as zonas que ainda não conhecíamos - nomeadamente Chinatown e os jardins envolventes do Jardim Chinês da Amizade. Comemos gelados e andámos, andámos. À noite fomos à ópera ver a Aida (a uma cliente que me pediu a reserva para si mesma o devo). Só pela sala, a experiência já seria especial. Mas a produção surpreendeu-me muito, de tão sofisticada (cruzando a excelência musical da orquestra, a acústica inigualável, a qualidade dos cantores, a opulência do guarda-roupa e o arrojo das projecções de vídeo que faziam o cenário transcender-se). Eu tenho as minhas manias elitistas, mas estou muito longe de conseguir identificar de uma ópera mais que as árias dos best-of. Pois posso dizer que cada minuto foi arrebatador, sem uma fresta de tédio ou distracção. A contralto tinha muita presença, o tenor tinha uma voz claríssima, o baixo era de respeito. A Aida em si estava representada por uma soprano cristalina, mas tão gorda e inexpressiva que resultava menos convincente do que se desejaria. Mas o conjunto foi tão espectacular que sinceramente digo que me lembrou o Carnaval do Rio em intensidade de estímulos sensoriais. Quando digo que nunca me sairá da memória não estou a usar de lugar-comum: foi um dos momentos musicais mais marcantes da minha vida.

Dia 10 - Sydney - Blue Mountains - Sydney


Apanharam-nos ainda nem 7h eram, para se escapar ao trânsito. Hoje fizemos uma visita de turistas a zonas de turistas, com muito tempo no autocarro e pouco nos miradouros. Mas valeu por duas coisas: a paragem numa quinta pedagógica, que tinha koalas, wallabies, cangurus de duas espécies, um camelo, um burro, e animais "normais" de quinta, onde me derreti a cair na esparrela de fazer festas e alimentar os bichos. Sim, custa vê-los fora do ambiente natural em liberdade, mas sim, sabe muito bem sentir-lhes o pelinho macio. Que se há-de fazer? A segunda coisa muito boa foi a impressão de as paisagens serem mais bonitas do que havia imaginado: as Três Irmãs, Govetts Leap, o Jardim Botânico, foram por mim descritos 8 anos a fio em programas de clientes, sempre com a secreta sensação de que seriam pequenos embustes. Mas não, são paisagens grandes e belas, que apenas mereciam dias vagueantes por ali, sem pressas, para se entranharem devidamente na memória.



Dia 11 - Sydney


Sábado na cidade - e um amanhecer quente e sossegado. Impusemo-nos poucas coisas, neste dia propositadamente deixado livre. Visitar um mercado de frescos em Chinatown, primeiro. Ainda mal estava a ser montado. Apanhar o ferry até Manly, depois. Não tínhamos pressa: fizemos a pé o trajecto até Circular Quay, olhando melhor para as ruas, formando as suas palavras cruzadas entre arranha-céus, restos novecentistas e obras infatigáveis. Passámos por Rocks, esse bairro que era de estivadores e agora é de ricos de pendor boémio. Havia um mercadinho, precisamente, para ricos boémios e turistas aspirantes a boémios. Depois, escolhemos o ferry mais lento e vimos Sydney do friso lateral, ao ar livre, espreguiçar-se debaixo do sol. Manly é o que pode combinar-se entre o Barreiro, a Costa da Caparica, o Estoril e Matosinhos, atraindo surfistas e passeantes de um lado, gente bem-vestida a almoçar do outro e até uma pequena reserva natural onde acorrem pequenos pinguins em clima adequado (é que hoje, a meio do Inverno, estiveram 25ºC) e onde locais e visitantes podem caminhar à beira de um mar inexplicavelmente turquesa-mediterrânico sobre uns passadiços de madeira. Fomos provavelmente os únicos a almoçar grelhados no restaurante e, arriscarei mesmo dizer, num raio de muitos restaurantes. Os fritos imperam por todo o lado, de uma forma tenebrosa. Há famílias inteiras de gordos a devorar fritos, gente com ar fino a comer delicadamente fritos, fritos por todo o lado, desde as mimosas vieiras aos pujantes filetes de peixe, o panado e o frito tudo mascaram. O acompanhamento universal são as batatas - fritas, sempre fritas. Mas hoje conseguimos fugir à sina. Para entrada comemos meia-dúzia de ostras, irrepreensíveis e menos salgadas do que as nossas. Depois, umas amostras de vieiras, uns camarões grelhados e um barramundi grelhadinho sem enfeites - muito bons. Regressando à cidade, já bem mais cheia de gente por esta hora, subimos os Jardins Botânicos para ir ver a Galeria de Artes. Visitar um museu civilizado e heteróclito como este é um dever cultural que se cumpre sem esforço. A arte aborígene era especialmente interessante, mas também havia pintura e escultura de europeus famosos, bem como as inspirações dos seus homólogos australianos. Para o fim do dia, houve projecções de motivos aborígenes, numa animação abstracta que se repete a cada pôr-do-sol, no lado este da Ópera. Passámos no supermercado para comprar o jantar e constatámos que a carne de vaca era bem mais barata que a de porco. Conseguimos que nos emprestassem um saleiro na recepção dos apartamentos. E o dia findou digno de uma grande cidade em despedida, com um cansaço de sentidos cheios e uma lassidão pensativa sobre os ritmos dos mundos.





Dia 12 - Sydney - Hamilton Island


Em Sydney, as pessoas são diferentes. Metem-se mais connosco, fazem piadas, conversam - do nada. Estão mais perto do estereótipo do australiano porreiraço. Eu encaro quem

adaptar em prol do outro, a auto-confiança (mas sem a elegância britânica) e o
fui conhecendo deste povo como um meio-termo impreciso entre a fisionomia inglesa, o seu amor à autoridade e às regras, a rigidez derivada da falta de vontade de se pragmatismo americano, o mesmo tipo urbanístico, a capacidade de tagarelar, a hipérbole e o histrionismo (mas sem tanta informalidade). Hamilton Island é vendida, em Portugal, com aura de paraíso. Com efeito, a aterragem mostra uma paisagem encantadora de ilhas completamente florestadas, sobre um mar do qual se vê os corais à transparência, mesmo do ar. Em termos cénicos, é difícil de ultrapassar.

Mas, em termos endógenos, as primeiras horas das minhas impressões mostraram-me uma construção, não diria densa, mas bastante presente; um uso em quantidade absurda de carrinhos de golfe, quais zangões apatetados, para as deslocações internas, cujos trajectos recaem, na esmagadora maioria, no intervalo dos 5 a 10 minutos a pé; um hotel mastodôntico e datado, falho de um conjunto de pormenores que lhe mereceriam a categoria e o preço (se os casais que para aqui mandei em lua-de-mel não me insultaram, isso diz melhor da natureza humana do que eu poderia supor); uma maré baixa à hora da minha chegada, deixando a descoberto um lençol de areia que mais parecia as praias inglesas na descrição nada abonatória do Magueijo (e não vou citar o seu vernáculo); uma água friazinha para a zona que é (bem sei que estamos no Inverno mas, que diabos, são os trópicos); uma grande abundância de raias de perigosidade por atestar, mas de porte respeitável por si só, a atapetar a zona de snorkelling; gente por todo o lado (saberão eles que é Inverno?) e da espécie que se vê no Algarve (pelo menos do que eu me lembro) - enfim, até agora valeram as estrelas, enormes, misteriosas, a ansiar por mais escuridão para poderem brilhar sem estorvos. Amanhã haverá cruzeiro para as que espero sejam as verdadeiras, não fraudulentas, belezas da Grande Barreira de Coral!


Dia 13 - Hamilton Island - Grande Barreira de Coral - Hamilton Island


O cartaz meteorológico no pontão avisava para mar "rough" (um termo que faz "encrespado" parecer irmão de "liso"), ventos de 30 nós, ondas de 3 metros e uma sensação geral de rock-and-roll. Sem mentiras. Esteve um vento danado, com um frio que me fez repescar o kispo do fundo da mala, achando erradamente que o Inverno tinha passado. Claramente, o Inverno tinha chegado, isso sim. O barco era enorme, levava mais de uma centena de pessoas, muitos dos quais chineses (mas deixem-nos de preconceitos: os australianos são os espanhóis do mundo anglófono - que falam muito, alto e demasiado depressa para que os percebamos. Não serão uns pobres chineses a incomodar em tal contexto). A tripulação debitava incentivos à diversão, à compra de excursões dentro da excursão, com invocações incontornáveis de "cool", "great", "amazing", "awesome" e outros lugares-comuns do exagero oco. Também matraqueou conselhos e explicações de como proceder no barco e na água, como se todos tivessem um gravador para repetir depois o que eles tinham dito, a ¼ da velocidade. Vá lá, havia alguma contemplação para com os chineses, que tinham direito a algumas frases traduzidas para eles. O resto do mundo não-anglófono que se lixasse (depois de ter pago, naturalmente). A ida demorou 2h com o barco a bater bem ao cair das ondas. Avistámos algumas baleias pelo caminho. À chegada ao recife, toda a beleza e toda a desilusão desta viagem: a água estava tão agitada que as minhas duas tentativas de fazer snorkelling bateram o record de sempre: nem 2 minutos estive na água. E só consegui ver os peixes que já tinha visto do posto submerso de observação do barco (uma cave com vidro). Também havia um barco semi-submergível de onde se podia ver um lampejo dos corais e onde andei duas vezes, mas não, não era a mesma coisa. Ora, se não é para isto que uma pessoa atravessa o mundo! Nem os camarões à discrição no buffet do almoço (que tirando, os camarões, estava cheio de saladas com muitos molhos) consolariam quem veio para ver peixinhos coloridos debaixo de água. Paciência. O barco partiu deixando vistas divinas sobre os cambiantes de azul do recife - ah, de longe pareciam tão convidativos... No regresso, as ondas pareceram a dobrar. Houve mais baleias. A maré da praia do hotel estava outra vez baixa. E foi assim a minha experiência na Grande Barreira de Coral, que calarei bem calada se quero continuar a vendê-la...

Sem comentários:

Enviar um comentário