O auto-imposto embargo russo aos produtos alimentares ocidentais despertou o interesse no desenvolvimento da produção nacional, coincidindo com uma nova geração de chefs interessados no seu património gastronómico.
Quem chega a Moscovo, pela primeira vez, nos dias de hoje, dá de caras com uma cidade muito diferente do estereótipo construído pelas imagens da era soviética. Sim, a perestroika deu-se há mais de 25 anos e é verdade que o Kremlin e uma boa parte dos edifícios históricos famosos, como Catedral de São Basílio ou o Teatro Bolshoi, mantêm a imponência de sempre. Porém, aquela imagem cinzenta dos edifícios públicos e de habitação de outrora, que ainda esperamos encontrar, não tem correspondência, pelo menos, numa boa parte das zonas centrais, recuperadas, onde impera uma cidade bela e cuidada. Como qualquer lugar que viveu um boom económico, a especulação imobiliária afastou o cidadão comum de certas áreas, tornando-se zona residencial e de comércio de uma elite abonada.
A crise económica está presente nas conversas mas não é tão visível à superfície, em três ou quatro dias de visita. Os hotéis continuam cheios, tal como os restaurantes, ou até o Bolshoi, onde, nos intervalos da ópera ou do ballet (sempre cheios), continua a ouvir-se o som característico do abrir das garrafas de champanhe — provavelmente com mais espumante russo à mistura do que antes.
Quando, em 2014, a Rússia decretou o embargo aos produtos alimentares ocidentais, como retaliação às sanções impostas pela União Europeia e Estados Unidos devido ao conflito na Ucrânia, a restauração foi a primeira a sofrer o impacto. Contudo, o problema não se colocou logo no início, dado que de imediato apareceram esquemas para tentar contornar o problema, com muito foie gras, mozzarella, roquefort e outros produtos a entrarem pelas fronteiras da Bielorrússia e Turquia reembalados como mercadoria local.
Porém, com a crise económica a afectar os negócios da restauração e a atingir fortemente o rublo, os esquemas tornaram-se menos atractivos e foram diminuindo. Por outro lado, com o desemprego a crescer, muitos viram no embargo uma oportunidade de negócio ou de mudança de vida
Segundo Gennady Jozefavichus, da Condé Nast, “o embargo desempenhou um grande papel na revelação de ingredientes locais — da carne de bovino aos produtos do mar, passando pelos vegetais e cereais. Antes ninguém utilizava a carne nacional, a australiana era mais barata e de melhor qualidade”. Segundo o jornalista gastronómico russo, a situação deu aos produtores nacionais “a possibilidade de encontrar um mercado e, com o crescimento do sector, começou a surgir mais investimento na criação de animais, quintas, nas técnicas de abate e conservação”.
Gennady acrescenta ainda que o mesmo aconteceu na agricultura, com novos actores a interessarem-se pela actividade. “A crise atingiu muito o mercado de trabalho e muitos decidiram mudar de vida e deixar as cidades.” O embargo e o aumento dos chefs e restaurantes interessados em produtos locais deu-lhes essa oportunidade. “Há um monte de novos produtores de queijos artesanais, novas cooperativas agrícolas (inclusive de produtos biológicos) e até mesmo restaurantes locavore, que trabalham quase exclusivamente com ingredientes de produção própria ou de proximidade.”
Um dos protagonistas desta nova revolução é o chef Vladimir Mukhin, que recentemente fez um jantar no Belcanto, em Lisboa, no âmbito do evento Gelinaz. Mukhin viu o seu restaurante White Rabbit ascender ao número 18 da mediática lista de Os 50 Melhores Restaurantes do Mundo e tem aproveitado esse lugar de destaque, e a participação nos principais congressos gastronómicos internacionais, para assumir o papel de porta-voz de uma nova cozinha russa, de tons vanguardistas, mas enraizada na tradição e na utilização de produtos sazonais e locais. No Lab, o espaço que recentemente abriu e que além de cozinha de testes funcionará como uma espécie de mesa do chef, o russo não se cansa de falar das suas criações, das receitas tradicionais que recuperou e que o têm inspirado, assim como deste ou daquele produto. Isto acontece entre os pratos do menu de degustação que prepara para um grupo de chefs e jornalistas internacionais convidados.
Fígado de pato de Vladivostoque cozinhado em ryazhenka (leite fermentado) com maçã e framboesas do Ártico, tavranchuk — costelas de bovino confeccionadas em kvass (bebida fermentada feita com pão escuro de centeio) — ou ainda esturjão ligeiramente fumado e cozinhado a baixa temperatura são alguns dos exemplos. Em certos pratos os sabores são pouco expressivos e, embora a sua cozinha seja interessante e rigorosa a vários níveis (técnicas, empratamentos, imagem), parece-nos manifestamente exagerada a posição que o restaurante ocupa na famosa lista.
Altai, Rússia
Gennady Jozefavichus reconhece-o. “O White Rabbit mostrou o poder da publicidade.” Porém, se é verdade que o restaurante tem lucrado junto do turista gastronómico e dos patrocinadores, que passaram a querer estar associados a ele, também se dá o caso, segundo ele, de “outros restaurateurs e chefs se aproveitarem para subir o mesmo cume”. O jornalista dá o exemplo do Twins, que “está agora na 75.ª posição”, e do jovem e talentoso Anton Kovalkov (treinado no Alinea, de Grant Achatz, Chicago) que deixou o seu restaurante para iniciar um novo projecto”. Ainda segundo Jozefavichus, o foco conseguido por Vladimir Mukhin “ajuda a redefinir todo o termo de cozinha contemporânea russa” e leva a que se dê cada vez mais relevância à produção local e sazonal. “Definitivamente, a estratégia funciona”, refere. “Os jovens chefs começaram a pensar, a pesquisar e a propor sua própria visão.”
Entretanto, o levantamento do embargo está previsto para o final de 2017, ainda que as autoridades falem na possibilidade de estendê-lo por mais uns anos. Será que a tendência para a produção local veio para ficar, ou, terminado o obstáculo às importações de produtos alimentares, voltará tudo a ser como dantes? Segundo a também jornalista de gastronomia Anna Kukulina, “a agricultura russa precisa de mais três anos e se o embargo terminar mais cedo alguns produtores não irão sobreviver”. Porém, Anna está convicta que se “fizeram grandes progressos” e que a situação e dependência em relação ao exterior não voltará aos níveis anteriores a 2014.
Fonte: Fugas
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