domingo, 21 de fevereiro de 2016

Madagáscar: Não é nada fácil chegar até aqui, mas mais difícil é partir

Île aux Nattes e Ifaty, uma no nordeste, a outra no sul do país, embora distantes entre si, têm em comum as belezas naturais e a simplicidade das suas gentes. E à medida que os dias se vão esgotando sem pressas, ao sabor do embalo das ondas e da alegria do povo, a atracção que exercem sobre o visitante aumenta mais e mais.
Reinava o silêncio quando, por fim, o taxi-brousse, depois de parar aqui e acolá, descarregar sacos, caixas, colchões, tábuas, chapas de zinco, acolher galinhas e todos os passageiros possíveis e sempre mais um, deu um último suspiro numa rua de terra batida bordejada por meia dúzia de casas. Quando o motorista do veículo desligou as luzes, o pequeno largo ficou nas trevas - não sabia que chão pisava, tão-pouco percebia em que ponto da vila me encontrava exactamente. A viagem, desde Antananarivo, a capital de Madagáscar, Tana para os mais íntimos, com uma curta escala em Toamasina, fora longa, cansativa, o corpo exigia repouso e o estômago pedia algo para saciar o apetite.
Limitei-me a seguir os passos de outros homens que, como eu, tinham acabado de chegar e, uma vez transposta uma porta, vi-me numa sala com pouco mais luz do que no exterior – resumia-se a uma vela por cada mesa. Olhava em redor mas apenas via silhuetas, uma ou outra sombra, fantasmagórica, desenhada nas paredes aparentemente lisas. Um silêncio sepulcral que, por breves segundos, associei a um velório e não ao ambiente de um restaurante. Mas o tilintar dos talheres e o prato que foi colocado à minha frente devolveram-me à vida – à realidade, perdão.
Não me recordava do nome da vila e os meus olhos, no meio daquela semipenumbra, também não ajudaram quando coloquei o guia sobre a mesa – com dificuldade viam o que comia. Hoje, quando penso no restaurante, tão modesto que nem baptizado foi, pergunto-me por que motivo não o achei, vendo o lado positivo da vida, um espaço romântico, com comida saborosa, à luz da vela, numa vila com uma toponímia tão sonante.
Soanierana-Ivono.
Saio para a rua e bem no alto, pálida, perscruto a lua, escondida daquela minúscula praça onde o táxi-brousse me deixara. Caminho lentamente, apenas iluminado pela bola redonda, quase às apalpadelas e chego, em poucos minutos, a um hotel – pelo menos anuncia-se como detentor desse estatuto.
Tonga soa!
A senhora deseja-me as boas-vindas. Sou recebido com amabilidade, não na recepção mas na cozinha aconchegada onde o fumo azulado da lareira sobe pela chaminé escurecida, e de imediato conduzido ao meu aposento através de um corredor a céu-aberto. Abre-se uma porta, uma lâmpada com uma luz débil cai do tecto feito de ramos de palmeira e à minha espera, bem no centro do espaço exíguo, um colchão.
Pergunto-me: quantos corpos terá já acolhido este colchão ao longo de uma vida que me parece demasiado longa? Ter-se-ão sentido felizes pelo descanso que lhes proporcionou?
Eu sinto-me feliz mas é uma felicidade efémera, não mais do que breves segundos, porque o sono não tarda a derrotar-me mal um pensamento rodopia no meu cérebro: não te esqueças de escrever que esta não é uma viagem para todos os corpos e muito menos ainda para todos os espíritos.
Desligo a luz mas quase nem precisava de o fazer.
Dependente das marés
Aos primeiros alvores do dia, quando acordo e saio para o exterior, é que percebo que acabo de pernoitar numa estrutura em madeira que se semelha, apenas na forma, às casas típicas de Santana, na Madeira. No horizonte cavalgam umas nuvens claras, os cheiros a comida inundam o ar; na cozinha, por onde volto a passar antes de me sentar de frente para as águas opacas, tachos e panelas estão ao lume, mais um dia como tantos outros, com dificuldades mas com sorrisos e palavras.
Manao ahoana ianao?
Tento responder em malgaxe:
Tsara fa misaotra.
Perante a boa disposição da senhora que parece estar ali a toda a hora, dificilmente um cliente poderá dizer que está mal e muito menos esquecer-se de agradecer a forma gentil como é tratado.
A sensação agradável que Antananarivo produziu em mim ameaça prolongar-se por mais uns dias. Uma boa meia hora mais tarde, chega o pequeno-almoço. Ao meu lado senta-se um adolescente. Sorri, um sorriso dócil, sem uma única palavra. A senhora acaba de pousar tudo o que carrega na bandeja e, antes de me virar costas, de volta à cozinha, diz:
- Mazoto a homana.
Agradeço. Apetite não me falta.
- Misaotra.
Como manda a boa educação, partilho a refeição com o menino. Ele não agradece, limita-se a esboçar um sorriso. Nas pupilas não se reflecte a minha imagem, projecta-se todo um país – as carências, a todos os níveis. À minha frente, os barcos vão chegando, com os seus passageiros, com legumes frescos, com peixe, com galinhas. O dia vai despertando: a menina que escova os dentes na margem, homens e mulheres, rostos emoldurados por sorrisos que parecem prolongar-se até à eternidade, abrindo as suas pequenas tendas de comércio, a bruma que vai subindo das águas como um vapor até desaparecer. E eu aguardo, pacientemente, que a maré seja favorável para oferry rumar até ao meu destino.
Caminho junto ao porto, crianças e idosos acolhem-me com um expressão serena e o rapaz, num silêncio que me perturba, segue os meus passos - parece perceber as minhas intenções quando fotografo as crianças, organiza-as, disciplina-as, fugindo, ele próprio, do protagonismo. Quando a manhã avança, já sem a neblina que marcara a alvorada, regresso ao hotel, retiro do meu saco um pacote de bolachas e, por essa altura, já o miúdo que me persegue como uma sombra tem um companheiro ao lado dele. O primeiro gesto, logo secundado por um dos seus milhares de sorrisos, é partilhar com o amigo aquilo que acaba de receber nas mãos.
Só nessa altura percebo que o menino é surdo-mudo.
Eu parto, por um mar revolto, rasgando-o, com ondas que agitam o barco, olho o cais, ele continua ali, de pé, com uma estátua, com a diferença de que vai acenando.
A vida simples
A ilha de Sainte Marie já se avizinha, o barco avança agora mais lentamente. No porto, à saída, respiro o ar e entro num carro de marca francesa, uma raridade por estes dias. Não há chave, apenas uma ligação directa, pelo meio uma pequena avaria, nada de anormal, até que chega onde uma piroga me espera. Durante a maré baixa, pode-se caminhar simplesmente entre a ilha de Sainte Marie e a Île aux Nattes.
A travessia é curta, do outro lado, mais sorrisos, um mundo que é de outro mundo, um mar de um azul sonhador, a vegetação para o interior, onde se esconde a recepção do hotel - a visão mais próxima que se pode ter do paraíso. Não há muito para visitar por aqui, leia-se monumentos, não há eventos culturais, há toda a simplicidade desta gente que ainda se apaixona pelas coisas simples da vida, talvez porque não conhece outra realidade, a que nos torna ambiciosos, a que nos faz aspirar a muito mais, numa perpétua exigência sem lógica e sem sentido. Para quem quer, a vida divide-se entre mergulho, pesca, um passeio de barco, horas e horas deitado na areia branca, escutando o rumor das ondas que se desfazem quase em silêncio.
Ao lado do hotel, para quebrar a monotonia, jogo futebol num relvado que é mais um ervado, com os jovens da aldeia que vestem camisolas de todos os clubes mais importantes da Europa, como alguém que carrega um sonho que nunca passará disso mesmo. Há um menino loiro, pouco habilidoso, que também se junta e a quem eles chamam, por entre muitas gargalhadas, dez mil ariary, como se aquelas pernas nada mais fossem do que uma unidade monetária.
Quando o ocaso está prestes a anunciar-se, caminho, quase sempre entregue à minha solidão, por pequenos trilhos por entre um mar verde de arrozais, observando as mulheres lavando as suas roupas e os utensílios de cozinha num riacho, vendo os meninos misturados com as meninas jogando à macaca, visitando uma escola, recebendo uma flor de uma criança com uns olhos tão vivos, acompanhando com o olhar os anciões nas suas tarefas agrícolas, vivendo a vida como a vida é vivida por aqui.
De quando em vez, como alguém que se cansa de morar no paraíso, acompanho os empregados do hotel, de barco, até à ilha de Sainte Marie: eles vão comprar o que é apenas necessário, eu limito-me a errar por perto, sem rumo, observando a natureza, as árvores com os seus troncos que não se conseguem abraçar e os seus ramos onde não cabe nem mais um pássaro, multiplicando os silvos como uma orquestra desafinada. E volto, pouco tempo depois, até ao meu pequeno lugar que podia caber no céu, esperando que as cores crepusculares tombem sobre a praia deserta e de onde apenas se avista um pescador solitário lutando, ao largo, no mar que brilha como um milhão de espelhos, pela sua sobrevivência.
O reencontro
Uns dias mais tarde, sob um céu vestido de múltiplas cores que anunciam a alvorada, deixo, imbuído de um sentimento de pena, a simplicidade e a humildade das gentes da Île aux Nattes para trás. Comigo, na piroga que me conduz a Ankarena, já em Sainte-Marie, a ilha cuja forma sugere uma mulher grávida deitada, pouco mais levo do que uma doce memória e a esperança de um dia voltar a reviver esta existência singular e despretensiosa.
ferry, partindo de Ambodifotatra, sulca as águas do Índico e, após uma hora e um pequeno susto (um pedaço de madeira que por pouco não provocava danos no motor), abranda a sua marcha acelerada e atraca, ao início da manhã, já sob um céu azul, no rudimentar cais de Soanierana-Ivongo. Disponho ainda de algumas horas, tomo o pequeno-almoço no modesto hotel que me abrigara e pergunto, mal me sento, pelo menino surdo-mudo, a quem gostaria de oferecer algumas das minhas roupas que não me fazem falta.
- Deve andar por aí, diz-me uma jovem com um bonito chapéu rendilhado de abas largas que lhe desenha sombras geométricas sobre o rosto.
A manhã avança e o autocarro está prestes a partir para Toamasina e para ele caminho ao longo da rua esburacada e de terra batida. À direita, avisto um pequeno e básico carrinho de madeira carregado com malas de turistas. Nesta tarefa, que rapidamente se esgota, participa o miúdo, de costas para mim. De repente, vira-se e, reconhecendo-me, corre na minha direcção para me abraçar.
O motorista do taxi-brousse liga o motor e o menino por ali fica, com as roupas nas mãos, sem lhes prestar grande atenção, fitando-me, sorrindo, acenando. Nunca soube o nome dele – mas os nomes são como as palavras, tantas e tantas vezes dispensáveis.
Volto a Tana, mora mora, como se diz por aqui, devagar, devagar, e logo rumo a Toliara, ao longo da mítica N7, uma aventura que qualquer viandante deve fazer pelo menos uma vez na vida.
Chegada ao sul
- É o Bruno! É o Bruno!
Quem me acompanhava, nessa altura, lançou-me um olhar e logo outro ao céu, como quem pede uma intervenção divina: clemência para a minha aparente demência.
- É o Bruno! É o Bruno!
Sentado na esplanada do restaurante, em Toliara, no mesmo que me haviam recomendado, com a garantia de ser o melhor da cidade, estava o Bruno Decorte, um belga que conhecera no Bairro Alto, em Lisboa, quando era gerente de um restaurante na Rua do Norte e, ao mesmo tempo, um dos proprietários do Chapitô.
O reencontro, meramente casual, provocou surpresa aos dois, por ocorrer, tantos anos depois, a uma tão grande distância – um pretexto para um tempo de celebração, com umas THB (Three Horses Beer, a cerveja mais popular em Madagáscar) pelo meio antes da despedida mal a tarde anuncia extinguir-se.
No terminal, onde chego de pousse-pousse (riquexó), as mulheres, com os seus rostos carregados de masonjoany, vendem peixe e gostam de ser fotografadas. Entro numa bâché, uma desconfortável pick-up, quando o sol doura a terra, lançando os últimos raios, e durante mais de uma hora, sempre aos saltos como um canguru, observo a vida ao final da tarde ao longo da estrada poeirenta que conduz a Ifaty e que me recebe já sob um céu nocturno.
O mar está imerso nas trevas, dele apenas chega o murmúrio sereno das ondas, é um apelo irresistível a um mergulho, mesmo a esta hora. Só no dia seguinte me lembro de que me esqueci dos chinelos de praia sobre as areias ainda quentes. Ao início da manhã, da varanda do bungalow que se projecta sobre a praia, em parte envolto pela sombra dos ramos dos coqueiros, o mar e o céu fundem-se em azuis e servem de pano de fundo à vida que vai decorrendo sem quebras com a rotina diária.
Mulheres e crianças testam, durante a maré-baixa, a generosidade do mar; homens e adolescentes têm as suas pirogas prontas para um simples passeio, mergulho ou pesca ao largo da costa; quatro crianças surgem, de pés descalços, cada uma segurando uma galinha, incitando-me a comprar mas com mais sorrisos do que convicção.
Ifaty é um lugar que transporta para um outro tempo. Aqui e acolá, preso a um gigantesco tronco de uma árvore ou na porta de uma mercearia, um anúncio, escrito à mão: uma noite de discoteca ou um concerto. Hoje à tarde há boxe.
Caminho pela aldeia de pescadores, por entre as suas casas, e desemboco num descampado rodeado por um conjunto de árvores em cujos ramos se sentam miúdos mais ágeis do que pássaros; no que em tempos foi um bidão de combustível, um pedaço de madeira, manejado por um adolescente, descarrega a sua fúria. Uma jovem, com uma blusa azul de alças, rompe por entre o público que se acotovela formando uma lua cheia. Ergue um dedo, um sinal desafiador, e logo depois envolve-se na luta com um rapaz, mais um espectáculo de rua, teatral, do que uma manifestação de violência.
Olho para o chão que piso e, mesmo ao lado, nos pés de uma mulher, vejo os meus chinelos de praia.
Os combates vão prosseguindo, encarnando a vida dos malgaxes, na aldeia, as mulheres vão cozinhando no exterior, em frente à casa, os mais pequenos brincam na rua, pontapeando uma bola por entre a poeira que se levanta no céu que se vai vestir como apenas se veste em África. Puxado por dois bois, comodamente instalado numa carroça que se queixa da idade, vou perdendo o cheiro do mar e ganhando outros odores à medida que, percorrendo um trilho, me embrenho pelo meio da vegetação. Por aqui e por ali, como num museu com as suas pinturas, árvores com troncos impossíveis de abraçar, com as suas formas generosas, como damas com influência na alta sociedade.
Uns dias depois, numa piroga convertida à vela, os silêncios do mar recordam os silêncios sob a sombra dos baobás; ao longe, perdendo-se no horizonte, avistam-se barcos de pescadores.
No mar e em terra, em Ifaty ou na Île aux Nattes, os dias são feitos de paz. Uma e outra exigem muito do viandante, horas e horas na estrada, mas difícil mesmo é deixá-las para trás.
O camião, largando uma grande nuvem de fumo, parte para Toliara. A vida, essa, decorre como sempre decorreu.
Guia prático
Como ir
Devido à pouca concorrência nos voos com destino ou partida de Antananarivo, espere pagar um pouco mais de mil euros para viajar entre Lisboa e a capital de Madagáscar. A melhor oferta e talvez a opção mais prática passa pela Air France, com uma escala em Paris e um preço (depende sempre das datas e da antecedência com que reserva) a rondar os 1060 euros (ida e volta).
Há outras companhias aéreas, como a KLM, em conjunto com a Kenya Airways, que também servem o aeroporto internacional de Ivato mas nenhuma delas proporciona melhores tarifas do que a Air France, com a vantagem de esta implicar apenas uma escala – se viajar com a KLM terá forçosamente de fazer paragens em Amesterdão e em Nairobi. Pode também consultar sempre a Corsair, que também efectua ligações directas desde a capital francesa a Antananarivo. Se não for do seu agrado viajar por via terrestre, a Air Madagascar voa entre Antananarivo e Sainte Marie por cerca de 470 euros (ida e volta), uma tarifa igual à que pratica nas ligações a Toliara, no sul do país. Neste caso, talvez fique mais em conta viajar com a mesma companhia aérea desde Marselha ou Paris e fazer uma escala na capital malgaxe.
Caso opte pelo barco para chegar a Sainte-Marie ou à Île aux Nattes, é importante ter em conta que os horários das partidas de Sonierana-Ivongo estão dependentes das marés. Viajar de taxi-brousse é extremamente barato e pode sempre efectuar uma paragem ao longo da N7 antes de chegar a Toliara (até porque a circulação rodoviária durante a noite não é habitual, pelo menos em grandes distâncias). A melhor hora para garantir transporte é durante a manhã.  
Quando ir
Uma vez que Madagáscar, uma ilha situada no Oceano Índico (quase toda nos trópicos), a menos de 500 quilómetros de Moçambique, ocupa uma vasta área (587 km2, quase sete vezes maior do que Portugal, 1600 quilómetros de norte a sul, 570 de ocidente a oriente e mais de cinco mil quilómetros de costa), facilmente se depreende que pode experimentar diferentes tipos de climas em simultâneo. Tanto é possível desfrutar de um sol radioso no sudoeste como, apenas uns dias depois, ver-se confrontado com o frio nos altos planaltos.
De uma forma geral, a melhor altura para viajar por Madagáscar é entre Abril e Dezembro. Os únicos meses a evitar, por coincidirem com a época das chuvas, são Janeiro, Fevereiro e Março, quando muitas das estradas se tornam lamacentas e intransitáveis. É também durante este período que o risco de ciclones se torna mais elevado, especialmente no leste e no nordeste da ilha.
Durante o Inverno, de Maio a Outubro, o maciço central, incluindo Antananarivo, proporciona dias frios, húmidos e ventosos mas, ao mesmo tempo, calor e muitas horas de sol na costa oeste e no sudoeste. Nestas últimas, os verões são tórridos e os invernos caracterizam-se por temperaturas agradáveis, de céu azul e escassa precipitação. No leste e nordeste é bom que se prepare para chuva e nebulosidade em qualquer altura do ano
Onde Comer
Um pouco por todo o lado, na Île aux Nattes ou em Ifaty, os hotéis constituem as melhores opções. Na ilha, pode experimentar o Le Maningory (combarbecue) ou o Les Lemuriens, com bons pratos de peixe e marisco sempre frescos. No sul, em Toliara, não deixe de passar pelo L’Etoile de Mer, na Boulevard Lyautey, aberto de segunda a sábado e especializado em comida afegã, indiana, mas também com boas pizzas e marisco fresco. Em Ifaty (na verdade em Mangily, mesmo ao lado), a melhor opção, se preferir evitar os hotéis mais caros, passa pelo Hôtel Vovo Telo, com uma gastronomia francesa (e peixe e marisco) que não desilude.
Onde Dormir
Na Île aux Nattes, o melhor lugar para passar uns dias tranquilos, num ambiente rústico, decorado com bom gosto e relaxante, é o Le Maningory, situado numa praia soberba no nordeste da ilha. O hotel dispõe de bungalowsfeitos de madeira e bambu, mosquiteiros, varandas com vista para o jardim e de um restaurante/bar, oferecendo ainda a possibilidade de alojamento em meia-pensão. Tanto pode optar por um bungalow standard (entre 33 e 37 euros), como por um familiar (para cinco pessoas e com um custo de 64 euros) mas a este preço terá de acrescentar mais quatro euros se desejar pequeno-almoço. O Le Maningory assegura ainda o transporte desde o aeroporto sem qualquer custo adicional e, se chegar de piroga sem ter efectuado reserva, a despesa também é suportada pela gerência.
Ainda na Île aux Nattes, tem como alternativa o Les Lemuriens, igualmente em frente à praia e com bungalows para duas pessoas a partir de 39 euros por noite – os mais pequenos ficarão felizes quando avistarem uma família de lémures que habitualmente erram por perto ou mesmo na área do hotel.
Mais a sul, se desejar viver uma experiência memorável, dividida entre conforto e tranquilidade, não deixe de reservar no Bakuba, um pequeno hotel para viajantes que dispõe de apenas três quartos (105 euros por noite) e duas suítes, uma situada no edifício principal (140 euros) e outra, com vista para o mar, com jardim privativo e casa de banho exterior (160 euros). Situado a escassos sete quilómetros do aeroporto e a 14 do centro de Toliara, o Bakuba oferece aos seus clientes a possibilidade de descobrirem a região de Saint Augustin e de Sarodrano, ao longo de uma pista com paisagens soberbas da natureza malgaxe, e ajuda a elaborar um plano de visitas e de actividades que incluem passeios de carro, de catamarã, de caiaque ou de piroga.
Em Ifaty (Mangily), por um preço económico (cerca de 20 euros), pode ficar alojado num bungalow com vista para o mar no Hôtel Vovo Telo ou no Bamboo Club Ifaty, com piscina exterior e restaurante, entre outras facilidades (tarifas a partir de 25 euros incluindo pequeno-almoço).
Com relativa facilidade irá encontrar, ao longo da ilha, a palavra hotely – não se trata de hotéis mas de casas que servem refeições básicas.
A visitar
Na ilha de Sainte Marie, em Ambodifotatra, encontrará a igreja católica mais antiga de Madagáscar, datando de 1857 e um presente da imperatriz Eugénia de França. A cidade acolhe também, diariamente, um interessante mercado e, mesmo ao lado da baía des Forbans (apenas acessível a pé durante a maré-baixa), pode visitar o cemitério dos piratas, que, inclui, alegadamente, o túmulo de William Kidd, o mais infame de todos – no início do século XVIII, a ilha de Sainte Marie era o quartel-general dos piratas e uma base ideal para emboscadas aos comerciantes que faziam as ligações marítimas entre a Europa e o Extremo-Oriente, passando pelo cabo da Boa Esperança.
Entre Julho e Setembro, centenas de baleias nadam ao largo da ilha e todos os anos, durante cinco dias, em finais de Agosto/início de Setembro, tem lugar o festival das baleias na îlot Madame, um evento que inclui exibições, conferências, venda de artesanato, concertos e o concurso de beleza Miss Zagnaharibe.
Informações
Para visitar Madagáscar é necessário ter passaporte com pelo menos seis meses de validade (em relação à data de partida) e, uma vez no aeroporto, obter um visto, um processo simples (se excluir o tempo nas filas) que não carece de fotografia mas implica ter na sua posse um bilhete de regresso. O visto é gratuito para todos aqueles que não permanecerem na ilha mais do que um mês (45 euros para 60 dias e 70 euros para três meses).
O francês é a língua oficial deste país com cerca de 22 milhões de habitantes, em tempos conhecido pela designação de República Malgaxe. Malgaxe é também a única língua falada e escrita (em ementas dos restaurantes, por exemplo) nas zonas mais remotas. Se não fala francês e pretende viajar de uma forma independente e pelos lugares menos turísticos, é importante que se faça acompanhar de um guia prático ou por alguém que tenha pelo menos conhecimentos básicos da língua (apenas uma escassa minoria – e quase exclusivamente em grandes hotéis - se faz entender em inglês).
Hotéis, atracções turísticas mais populares e todos os meios de transporte, tanto aviões como autocarros, têm a sua lotação esgotada durante o período de férias na Europa, em Julho e Agosto, no Natal e na Páscoa, uma tendência que é acompanhada pela subida dos preços.
Antes de viajar é importante que tenha em conta o alto risco de contrair malária (a prudência, mesmo não sendo suficiente para evitar, exige-se), que deve fazer-se acompanhar de um bom repelente para os insectos e de uma lanterna para o caso de pretender caminhar durante a noite.
Madagáscar substituiu, há mais de dez anos, o franco malgaxe pelo ariary, a moeda em circulação antes de a ilha ser colonizada pelos franceses. O câmbio flutua diariamente (um euro equivale a aproximadamente 3500 ariary), pelo que se aconselha trocar apenas o necessário. Alguns hotéis aceitam pagamentos em euros e também oferecem a possibilidade de converter, sem encargos de taxas, moeda estrangeira em ariary.
Algumas cidades mantêm os nomes em francês e em malgaxe e não se admire quando ouvir ou ler Tuléar em vez de Toliara, Tamatave no lugar de Toamasina ou Nosy (significa ilha em malgaxe) Boraha ou Nosy Nato quando se referem a Sainte Marie e à Île aux Nattes, respectivamente.
A diferença horária entre Portugal e Madagáscar é de mais três horas.

    quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

    Hotéis onde os hóspedes colhem os alimentos - Il Salviatino, Toscana, Itália















    As colheitas na Toscana aumentam significativamente com a chegada do Outono, que traz consigo a época das trufas e as folhas amarelas avermelhadas. O Il Salviatino, situado nas colinas da Toscana, oferece aos seus convidados o pacote "Florentine Food for Thoughts", onde os hóspedes são levados a uma maravilhosa caça às trufas. O Hotel dispõe de um belo jardim italiano e foi construído numa villa, que remonta ao século XV, expondo vários afrescos da época que nos faz voar no tempo.

    terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

    De Lorosae a Loromunu, Timor é um espanto

    Timor das praias de água transparente, recifes de corais e portentosas montanhas. Da ponta Lorosae (onde nasce o sol) à Loromonu (onde o sol se põe) a viajar sem sabermos o que vamos encontrar. No fim, não há como não nos rendermos à beleza desta terra.
    Quando aterramos no aeroporto Presidente Nicolau Lobato e temos de atravessar a pista a pé, até à minúscula sala, com o tapete rolante minúsculo, que nos devolverá as malas que despachamos há mais de 40 horas, tudo à nossa volta parece querer reforçar a evidência de que acabamos de aterrar num país de terceiro mundo. Mas um aeroporto é só um aeroporto.
    Estamos em Timor-Leste, um país tão distante e tão próximo de nós ao mesmo tempo. Estamos num bocadinho da Ásia onde se fala português (na verdade, não se fala assim tanto português, nisso os indonésios foram bem-sucedidos), e sentimo-nos estranhamente em casa. Não sabíamos bem o que esperar de Díli e, talvez por isso, quase tudo nos tenha surpreendido: o trânsito caótico de Comoro; a animação na Avenida de Portugal, ao final do dia, com grupos de pessoas a fazer jogging (jogging, leram bem), crianças a mergulhar no mar e cardumes de peixes expostos nos muros, ou pendurados nas árvores; o som da mesquita; as motorizadas com mais do que duas pessoas em cima; o recorte perfeito do crocodilo nas montanhas, com o Cristo Rei na ponta do nariz; as habitações precárias; as habitações de luxo; os porcos no meio da estrada (porcos, leram bem) – e os cães e as galinhas e as cabras; os hotéis de cinco estrelas; o Palácio do Governo; o mercado da fruta em Lecidere; a catedral; o Timor Plaza (a outra catedral, a do consumo); os restaurantes gourmet; os tiga rodas com carne frita; a praia de areia branca...
    Mas vamos por partes, que esta cidade, rural e cosmopolita ao mesmo tempo, tem muito que se lhe diga.
    Um gin na praia
    A primeira coisa que fazemos depois de largar as malas é ir até à praia da Areia da Branca. Sentamo-nos numa esplanada, a que tem as melhores panquecas de Díli (e portanto de Timor-Leste, porque que se saiba não se fazem panquecas fora da capital), a beber uma água de coco à sombra de uma árvore, com o Pacífico à nossa frente e parece-nos que o tempo devia parar naquele momento. A praia está praticamente vazia, porque é dia de semana e só ao domingo costuma encher-se de banhistas. E quando o sol se põe, com tal rapidez que parece que o estamos a ver em stop motion, a praia da Areia Branca parece-nos a mais bonita do mundo, até conhecermos todas as outras de Timor-Leste. Seja como for, não perde o estatuto da praia com o mais bonito pôr do sol, ou pelo menos um dos mais bonitos.
    (Já agora, um parêntesis para dizer que a melhor praia de Díli é a praia dos Coqueiros. Para lá chegar é preciso passar Comoro e uma encruzilhada junto à pista do aeroporto. Depois é procurar o cemitério e estacionar.)
    Há pescadores que lançam as redes no mar e se a pescaria for boa não faltará peixe à venda na beira da estrada, sobretudo ao final do dia, quando as pessoas saem do trabalho.
    É, aliás, ao final do dia que a cidade se torna mais interessante, por estar menos calor e por haver grande movimentação na rua, sobretudo na marginal (quase todas as lojas, incluindo as do shopping Timor Plaza fecham às 18h), onde se vê a grande variedade de nacionalidades que vivem na capital. Há os que fazem jogging; há os que se sentam com telemóveis e computadores portáteis em Lecidere; há os que aproveitam para fazer compras no mercado da fruta, este sim aberto até mais tarde; há os que tomam banho no mar, sobretudo crianças, ali junto ao farol; há os que andam de bicicleta; há os que vão beber um gin à Diza, e por aí fora.
    Vista daqui, Díli é uma cidade cosmopolita (com galos esquizofrénicos que cantam a noite toda), onde não faltam restaurantes de comida de praticamente todos os cantos do mundo. Suspeitamos que nesta cidade se come melhor do que em muitos dos melhores restaurantes ocidentais. E também podemos apostar que se bebe o melhor café do mundo, no Letefohoe Coffee Shop, junto ao Royal Beach (sim, já provámos o famoso, e delicioso, café indonésio que os Luwac defecam).
    Ainda por cima, também há o equivalente às barracas das bifanas, ou carrinhos de hot dogs, que é uma coisa que fica sempre bem em qualquer cidade do mundo, só que tipicamente timorense, com espetadas de vários tipos de carne e katupa, um arroz com leite de coco embrulhado em folhas de palmeira.
    Robby Sanety na estereofonia
    É quando passeamos no centro da cidade que nos apercebemos o quanto Díli é confusa, suja e excitante. Há sempre muito trânsito, as motorizadas parecem formigas desencarreiradas e não nos parece que as regras sejam uma preocupação dos condutores. Depois, está sempre muito calor. Sair de casa depois das 10h não é lá muito boa ideia na altura do ano que começa a pedir chuva, como é o caso de Novembro. Além disso, as lojas de Comoro são quase todas de chineses, portanto a quantidade de brinquedos, flores e outras tralhas de plástico, roupa sintética e aparelhos electrónicos é bastante avultada por metro quadrado. Isto para não falar das gigantescas colunas de som, que mostram o que valem em decibéis pouco recomendáveis. Pelo menos é o Robby Sanety que canta Hakarak o mai lalais (qualquer coisa sobre querer que a sua amada chegue depressa). Percebe-se o sucesso da música entre os jovens timorenses com penteados rockabilly e olhares de soslaio para as jovens de sorrisos rasgados e cabelos esticados em rabos-de-cavalo que entram e saem das microlets, os “autocarros” que circulam pela cidade.
    Mas no meio de tanta confusão de lojas há algumas preciosidades, como a dos alfaiates, que costuram, nas suas Singer a pedal, virados para a rua. Os modelos expostos não nos convencem muito, ao contrário do que acontece no Mercado dos Tais, o tecido tradicional de Timor. Aqui somos bem capazes de perder a cabeça. Algumas mulheres tecem os fios de algodão tingidos nos teares de madeira e a profusão de cores e motivos, num mercado bem arranjado e bastante silencioso, são uma espécie de bálsamo no meio de uma cidade caótica e barulhenta. As mulheres de dentes vermelhos do betel, uma planta que se masca para ajudar a enganar a fome, e vestidas com oscamabatic (tecidos tingidos enrolados à cintura) contrastam com a população que anda de um lado para o outro nas ruas.
    Também há uma boa parte da população que fica em casa, sentada atrás das bancas de legumes da horta, rodeada de dúzias de crianças e bebés seminus, de cães, uma ou outra cabra e várias galinhas. Ao lado das bancas é comum encontrar-se a campa dos familiares mortos. Mortos e vivos lado a lado.
    Outros penduram os legumes e as frutas em paus e andam com eles às costas pela cidade, ou em carrinhos de mão puxados por bicicletas. Um cacho de bananas, mais quatro abacates (que acabam por apodrecer, porque não sabemos o que fazer com eles), custam-nos três dólares.
    Também há vendedores de rua mais direccionados para as crianças e jovens (esta gente percebe de marketing sem o saber): vendem pequenas espetadas de carne frita e fatias de manga em saquinhos de plásticos, às portas das escolas. Alguns também têm gelados poloretis. À volta deles juntam-se grupos com as cores das fardas das escolas.
    Nesta altura há bandeiras timorenses espalhadas por toda a cidade, por causa das comemorações dos 40 anos da declaração da Independência de Timor-Leste, no dia 28 de Novembro de 1975. Nestes 40 anos o país passou por tudo aquilo que sabemos (só nos primeiros quatro anos de ocupação indonésia Timor-Leste perdeu 23% da sua população), mas, contra tudo e contra todos, conseguiu vencer, transformando-se na mais jovem nação do mundo. Basta dar uma vista de olhos no Museu da Resistência para nos vergarmos perante a coragem deste povo e, depois, arrepiarmo-nos ainda mais no cemitério de Santa Cruz.
    Lá, no museu, lê-se: “Deus criou Timor para nos dar madeira de sândalo”, Tomé Pires, Summa Oriental, 1514, mas parece que Tomé Pires se enganou. Se Deus criou Timor tinha, seguramente, outros planos para este país. 
    Ataúro, a ilha do sossego
    A ilha que se vê de Díli, Ataúro, fica a cerca de 25 quilómetros e é perfeita para uns dias de puro relaxamento. E o puro aqui tem todo um outro significado.
    Numa hora chega-se a Ataúro (optando pelo Nakroma, que faz a viagem semanalmente, demora mais tempo e é muito mais barato) e com sorte podemos ver golfinhos na viagem, ou avistar as baleias, que costumam incluir esta zona nas suas rotas migratórias, por esta altura do ano. Não tivemos essa sorte, infelizmente. 
    Também não explorámos a ilha como merecia (há vários barcos de pescadores que nos levam a diferentes praias e a sítios ainda mais recônditos), o único esforço que fizemos foi procurar as ruínas da prisão da época colonial portuguesa, para descobrir que nem as ruínas sobram, apenas uma placa a referir que ali existiu uma prisão. De resto, limitámo-nos a desfrutar as magníficas vistas do resort e, sobretudo, o silêncio – aqui não há galos esquizofrénicos a cantar toda a noite, nem cães a ladrar.
    A ilha tem cerca de 10 mil habitantes e os poucos que se cruzaram connosco pareceram-nos bastante mais reservados do que os de Díli, talvez por influência do protestantismo, a religião professada pela maioria.
    No mercado, junto ao porto, vende-se maioritariamente peixe seco e algas e mesmo aí não há grande ruído ou frenesim. Nem aí, nem no atelier das famosas bonecas de Ataúro, onde umas quantas costureiras as fazem.
    É um sossego, esta ilha.
    Ponta Leste
    Lorosae, onde o sol nasce

    Quando saímos de Díli em direcção a Baucau, a segunda maior cidade do país, somos imediatamente confrontados, primeiro, com a omnipresença da montanha, no serpenteado e sobe e desce da estrada, e depois com as vistas sobre o mar, sobre a imensidão do mar e do recorte das praias.
    A silhueta dos montes que nos faz pensar nas figuras do teatro de sombras, onde não falta o detalhe das árvores desenhado nos altos e baixos, acompanha-nos grande parte da viagem.
    Sim, as montanhas não parecem verdadeiras, ao longe, só que nada é tão real em Timor-Leste como a montanha, mesmo quando parece irreal. Mas isso iríamos descobrir depois, por enquanto descíamos até Hera, para depois atravessar Metinaro e seguir para Manatuto, parar o carro para entrar no mar, porque sim, porque está mesmo ali, imenso e ostensivo com os corais à mostra, e continuar caminho com a roupa molhada, chegar a Vemasse com a roupa quase seca e entrar no distrito de Baucau. Nós e as coloridas “biscotas” (o transporte público que circula entre distritos), baptizadas com nomes como “Que Pena”, ou “John Rambo”, atulhadas de gente e de todo o tipo de carga, que pode incluir colchões ou veículos motorizados presos nas traseiras e cabras presas no tejadilho.
    A primeira coisa que salta à vista é o verde, ou melhor, os diferentes tons de verde das árvores. Estávamos particularmente interessados nas árvores, por causa da acácia rubra -  provavelmente a árvore mais bonita do mundo -, mas o verde impunha-se. A segunda coisa, já no centro da cidade, na parte velha, é a pousada. Um belíssimo edifício construído pelos portugueses nos anos 1950 que se ergue sobranceiro na colina, como se quisesse lembrar a todos a beleza da civilização.
    O mesmo não se pode dizer em relação ao antigo mercado, que espreitamos pelo portão fechado a caminho do Amália, um restaurante que se diz de comida portuguesa, que serve bacalhau à Brás, por exemplo, e onde se pode pedir uma garrafa de vinho tinto (fora de Díli são raros os sítios onde se pode comprar vinho), mas também uma água sal (uma espécie de sopa de peixe) maravilhosa. O peixe coco da sopa tinha sido pescado nesse dia por um dos clientes do restaurante, que estava a almoçar ao nosso lado e nos explicou que faz pesca submarina.
    Como a congestão não nos preocupa, decidimos ir dar um mergulho de seguida. Já tínhamos ouvido falar das praias de Baucau, de como eram bonitas e perigosas, por causa dos crocodilos, que costumam dar o ar da sua graça por estas bandas, mas não tínhamos como imaginar que seriam tão...selvagens. Uma pessoa desce quase a pique até à praia (mal sabíamos as descidas a pique que ainda teríamos pela frente), conduz o jipe paralelamente ao mar, pelo meio dos campos, onde pastam cabras, pára e de repente parece que acabou de chegar a uma ilha onde ninguém pousou os pés antes de nós. Digamos que as cabras poderiam ser uma falha de raccord e o facto de chegarmos a uma ilha de carro, e não de barco, também.
    E a referência cinematográfica não está aqui por acaso, é tudo demasiado fotogénico para ser real, a areia branca, a água azul e a praia deserta. Isto para não falar da temperatura da água e da sensação de mergulhar num mar tão limpo, que são coisas que não cabem nas películas.
    Estávamos nisto, fascinados com tanta beleza natural, e ainda não tínhamos chegado ao pequeno ilhéu de Jaco, considerada por muitos um paraíso na Terra.
    Jaco não é deste mundo
    As quase duas horas desde Baucau até à pitoresca Com, que é onde termina a estrada, são muito diferentes das duas horas e tal de viagem de Díli a Baucau: as estradas estão em pior estado, ainda que bastante transitáveis, o relevo é maioritariamente plano e o tráfego diminui consideravelmente. O que faz com que, por sua vez, aumente o número de cabras, porcos, galinha e caraus (uns bois que parecem búfalos) nas faixas de rodagem.
    Chegados à pequena vila, fica-se com a sensação que se entrou num pequeno oásis com o resort bem arranjado a destacar-se. As crianças que o atravessam, vestidas com as fardas da escola, e os sorrisos que lhes são tão característicos, dão-lhe um ar ainda mais aprazível.
    Numa pequena visita pela vila – uma caminhada de 10 minutos, de ida e volta, na rua principal – fica-se a saber que, além do resort ,há umas quantas guest houses, onde se pode comer uma bela refeição, tipicamente timorense, a um preço muito económico. Percebe-se que, apesar de sermos os únicos turistas, além de um australiano, a população está à espera dos malais (estrangeiros) para lhes venderem as pequenas peças de artesanato que fazem. Até aqui só nos tinham pedido cumprimentos, sobretudo aos pequenos que viajam connosco, como se tocar num malai fosse uma coisa rara.
    Saímos de Com, com uns quantos colares e uma casa típica de Los Palos em miniatura,  em direcção a Tutuala e quando vimos a placa para Jaco pareceu-nos que se tratava de um engano. Provavelmente o vento tinha inclinado a placa para o sítio errado, pensámos, mas não havia nenhuma outra estrada, se é que se podia chamar estrada àquilo.
    Enfim, fomos por ali abaixo, afinal toda a gente sabe que para chegar ao paraíso são precisos alguns sacrifícios. E, além disso, íamos fazer o quê, depois de tantas horas de viagem, desistir? Bem, não que isso não nos tenha ocorrido a certa altura, mas a verdade é que passados os 40 minutos que demorámos a percorrer os oito quilómetros que nos levam a Valu, a praia em frente a Jaco, apetece-nos agradecer.
    Um dia esta estrada será mais fácil e esta praia estará cheia de gente. Gente muito mais animada, logo muito mais barulhenta, do que o grupo de brasileiras que pernoitou na mesma altura que nós.
    Nada contra festas e alegria, aliás, ninguém parece incomodar-se com isso, mas, ou estamos numa idade, digamos, madura, ou aquele sítio pareceu-nos demasiado sagrado para ser profanado com actividades mundanas.
    Aliás, Jaco é efectivamente considerado sagrado pelos timorenses – não é permitido pernoitar no ilhéu por isso mesmo, assim sendo temos de montar as tendas do lado de cá, depois de apanhar uns quantos tamarindos, adormecer ao som dos tokés espalhados pelas árvores (uma espécie de lagarto que faz um som repetitivo semelhante ao nome que tem) e esperar pelo dia seguinte.
    E no dia seguinte o sol nasce, perto das seis da manhã, um verdadeiro rei que emerge das profundezas do mar de braços abertos, brilhante como nenhum outro. Os golfinhos vêm prestar-lhe vassalagem e damos por nós a fazer o mesmo instintivamente.
    Aliás, dobrarmo-nos perante a natureza e desdobrarmo-nos em vénias é a coisa que mais nos apetece fazer ao longo do dia passado no ilhéu de Jaco. Agradecer aquele mar de diferentes tons de azuis, aquela areia branca, aqueles corais que podemos tocar com as mãos, o peixe que pescaram para comermos...agradecer, agradecer e agradecer outra vez. E, já no barco de pescadores que nos vem recolher à hora combinada para atravessar a pequena distância que nos separa de Valu, olhar para Jaco e agradecer mais uma vez.
    Aventura na selva
    Como é que passámos das águas cálidas de Jaco para o meio de uma densa selva, até podia ser uma coisa difícil de explicar se não estivéssemos em Timor, mas em Timor é mesmo assim. Num momento estamos a beber um bom gin numa esplanada a ver o pôr do sol, a seguir já estamos a nadar com peixes, no meio dos corais, e depois vemo-nos a passar ribeiras a vau rodeados de caraus que nos olham como se fôssemos extraterrestres acabadinhos de aterrar neste planeta.
    Nós próprios sentimo-nos um bocado estrangeiros neste planeta ao fazer o percurso Loré, Iliomar, em estradas muitas vezes sem saída e sem pontes, rodeados de vegetação exuberante, sem ver uma única alma ao longo de vários quilómetros, ao ponto de as poucas aldeias com que nos cruzamos parecerem irreais, como as miragens num deserto. O calor intenso, as casas típicas em cima de estacas com telhado de colmo e os habitantes deitados debaixo das casas ajudavam a criar a sensação de ilusão.
    Depois, claro, há o momento em que temos de sair do carro para aliviar a bexiga, damos de caras com uma cobra amarela, demoramos a processar o facto de estarmos a 50 centímetros de uma cobra venenosa e fazemos as figuras mais tristes da nossa vida. Bom, talvez não as mais tristes, mas seguramente das que ficarão no top dez.
    Não fazíamos a mínima ideia de como seria este “pequeno” trajecto de 33 quilómetros, até porque nos parece que muito pouca gente o utiliza. Um “tio” (forma respeitosa de tratar alguém mais velho) de Liquiçá, que estava a servir de motorista em Valu, confirmou-nos que era possível fazê-lo e quando chegámos a Loré a pequena povoação pareceu-nos tão pacífica, tão bem arrumada, que pensámos que dali para a frente seria só conduzir junto ao Taci mane (mar homem) da costa sul.
    Não foi assim, portanto, mas pelo menos podemos dizer que estivemos dentro de uma floresta tropical a sério e que é bastante diferente daquela do Oceanário.
    No coração da montanha
    Instalados em Ossú, depois de nove horas metidos dentro de um carro (sim, porque em Timor as distâncias não se medem em quilómetros, mas em tempo) apetece-nos dormir, tomar banho e comer, tudo ao mesmo tempo, mas ficámos parados no meio do jardim do eco-resort a olhar em volta. A montanha parece que nos vai engolir a qualquer momento. A “mana” que vai cozinhar para nós quer saber o que queremos comer e nós queremos qualquer coisa, não interessa, a montanha parece que nos vai engolir.
    Dali podemos ir para o Mundo Perdido, uma zona protegida de floresta tropical, ou mergulhar no belíssimo rio Loi Hunu, mas temos mesmo de ir ter com o comandante das Falentil, Tito da Costa Cristóvão (todos os quartos deste eco-resort têm nomes de antigos líderes da resistência). Também aqui adormecemos ao som dos tokés, mas estes não estavam nas árvores, estavam mesmo dentro de casa. São bonitos, são lagartos às bolinhas, mas bem que podiam viver lá fora, apesar de serem muito úteis a dar cabo dos mosquitos.
    E amanhece. Mais uma manhã em Timor-Leste, uma manhã nas montanhas que acolheram os guerrilheiros que resistiram contra a ocupação indonésia. Atravessar o Matebien, que significa monte das almas, é como pisar solo sagrado, mais um. A igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, enorme e cor-de-rosa, rodeada de fiéis com as roupas de domingo, parece um elemento folclórico. Mas em Timor tanto se adora a Deus sobre todas as coisas, como a montanha sobre todos os deuses.
    E a montanha que é a casa dos espíritos ancestrais também guarda as marcas dos homens que estão de passagem, como os japoneses que cavaram os túneis em Venilale, para guardar armas, durante a II Guerra Mundial.
    Entramos nesses túneis e de repente estamos rodeados de crianças timorenses que vão chamando umas pelas outras para verem os malai. Uma delas diz-nos qualquer coisa em tétum, aponta com mão e fala aflita. Percebemos que não devemos entrar num dos túneis, porque pode desabar. Do lado de fora, um porco, que parece uma vaca, dormita ao sol.
    Nós seguimos, de volta a Baucau e dali para Díli. Para trás vão ficando os cães escanzelados, as mulheres que lavam a roupa no ribeiro, as crianças que ensaboam as cabeças e os homens que passeiam, uns com galos ao colo, outros com catanas nas mãos.
    Ponta Oeste

    Loromonu, onde o sol se põe
    Estávamos convencidos que depois de tudo o que já tínhamos visto e experienciado, no lado do sol nascente, pouco mais nos poderia surpreender no lado do sol poente, mas não podíamos estar mais enganados.
    A viagem de Díli a Balibó é relativamente fácil, há bastantes troços da estrada que estão alcatroados (e, espantem-se, alguns até têm sinais de trânsito!) e oTaci feto (mar mulher) acompanha-nos em grande parte do percurso. Além disso, é possível fazer algumas paragens bem agradáveis, em Liquiçá e Maubara, para petiscar boa comida e fazer compras.
    Liquiçá é, aliás, o sítio escolhido por muitos portugueses, e outros estrangeiros a viver em Díli, para passar os fins-de-semana fora da capital, ou para o almoço de domingo. O restaurante Black Rock, mesmo em cima da praia, é um grande atractivo e a vila é muito bonita, com vários edifícios portugueses, incluindo o Hotel Tokede, que, bem recuperado, seria um excelente substituto do Grand Budapest Hotel, no filme de Wes Anderson. Já estamos a ver um grande plano com os locais a atravessar a praia a caminho da missa. O lago de Maubara, uns quilómetros à frente, onde se diz que vivem  maus espíritos, também ficaria muito bem nesse filme.
    Em frente ao forte de Maubara, onde se pode comer uma boa refeição e relaxar à sombra das enormes árvores, existe um pequeno mercado onde se podem comprar artigos de artesanato, como as almofadas com aplicações de tais e os famosos produtos de cestaria, feitos com a folha da palmeira,  que tanto servem para fazer cestos (e espanta-espíritos, chapéus, bijutaria e por aí fora), como para extrair a seiva com que se faz o tua mutin, uma espécie de vinho bastante intragável.
    Parece um contra-senso que nestas duas pacatas vilas tenham acontecido batalhas sangrentas em diferentes períodos da História. Em Maubara no século XIX, com a revolta dos reinos contra a governação dos portugueses; e em Liquiçá, uns meses antes do referendo de 30 de Agosto de 1999, para a Independência de Timor-Leste, onde um grupo de milícias indonésias atacou uma igreja e chacinou um número indeterminado de timorenses, sobretudo crianças e idosos.
    Silêncio que se vai pôr o sol
    De volta à estrada, até Batugadé, que faz fronteira com a Indonésia. Acaba aqui, portanto, o Timor que fala português, ou que quer falar português. Na verdade não acaba completamente, porque do outro lado, a pouco mais de 100 quilómetros da fronteira, encontra-se o enclave de Oecussi, que foi, aliás, onde os portugueses atracaram quando chegaram a esta parte do mundo e que por estes dias se encheu de festa para comemorar os 40 anos da Declaração da Independência e os 500 anos da chegada dos portugueses.
    Mas nós não vamos a atravessar a fronteira, seguimos para Balibó, uns 14 quilómetros mais à frente. De Balibó sabíamos apenas que o forte construído pelos portugueses, no século XVIII, estava transformado numa pousada com muito boas condições (depois de tantos quilómetros de estrada, num país com poucas infra-estruturas, a estadia passa a fazer parte dos pontos de interesse) e do massacre que ficou conhecido como “The Balibo Five”, por causa dos cinco jornalistas que foram assassinados pelos indonésios.  Há um pequeno museu dedicado a estes jornalistas, no centro da vila, que quisemos espreitar.
    Parece-nos que eles teriam gostado de passear pela vila connosco, teriam gostado de ver as crianças timorenses a jogar xadrez, com regras inventadas por elas, de ver as nossas crianças a profanar uma árvore sagrada e até de entrar nas grutas connosco, apesar de, certamente, já as terem visto muitas vezes. Enfim, teriam gostado de ver que as pessoas têm uma vida normal. Uma vida difícil, muitas delas, mas sem terem que viver escondidas e com medo de serem as próximas vítimas.
    Reina a calma, portanto, mas é quando anoitece que notamos o silêncio absoluto. Não é um silêncio igual aos outros silêncios, é muito mais silencioso. Parece que nem os bichos querem perturbar a paz. Em Ataúro, o silêncio parecia ser forçado pelo isolamento, mas aqui existe uma certa solenidade, como se montanha dissesse: silêncio, que se vai pôr o sol. E faz-se silêncio absoluto.
    E essa solenidade vai-se impondo amiúde no resto da viagem pelas montanhas da cordilheira central, que inclui o Pico do Ramelau, o ponto mais alto de Timor-Leste, que é para os timorenses o “monte avô”, e que nós, infelizmente, não subimos.
    Vai-se impondo quando saímos de Maliana até Bobonaro e temos de parar várias vezes para apreciar a inacreditável paisagem, e depois quando descemos até B’ee Manas (fonte de água de quente), em Marobo, e levamos com o monte Cailaco em cima.
    É óbvio que para lá chegar tivemos de ultrapassar algumas dificuldades, mas parece-nos que esta coisa de se fazer de difícil é um dos encantos deste país. Sobretudo porque, à partida, haverá sempre alguém disposto a ajudar-nos, como as meninas que não nos compreendiam ou o catua (idoso), que seguia muito direito, impecavelmente vestido de camisa branca e um tai colorido à volta da cintura.
    Enfim, conseguimos chegar à àgua sulfurosa (e, mesmo assim sagrada), mas não somos capazes de tomar banho. Além de ser demasiado quente, o cheiro a enxofre é muito intenso — nada que incomode os timorenses que lá estão a banhar-se, ou a lavar a roupa.
    Um pouco mais acima somos impelidos a parar para explorar as ruínas do que noutros tempos parece ter sido um hotel, e que naquele enquadramento se assemelha um castelo dos contos de fadas. Talvez a Bela Adormecida seja daqui. Talvez alguém possa acordá-la para fazer alguma coisa por este reino — e pelas meninas que nos tentaram ajudar há uma hora e meia e que continuam a caminhar quando nos voltámos a cruzar com elas. 
    Na Terra do Nunca
    Correndo o risco de estarmos a exagerar nas alusões às histórias infantis, é inevitável não comparar as coisas que vimos no percurso de regresso a Díli pela meio da montanha, em direcção a Ermera, às imagens que temos das histórias de encantar.
    Tínhamos sido avisados, pelo guia da Lonely Planet: “You’ll be alone with your own thoughts and the striking (and times arid) landscape.”  Impressionante é um bom termo para descrever a paisagem. Ou a sensação de mergulhar nas cascatas de Atsabe, rodeados de montanha por todos os lados, e de pequenos timorenses que vieram ver os malai a nadar.
    Mas é já depois de Atsabe, a caminho de Ermera, que a paisagem se torna mesmo indescritível. Quando não estamos a atravessar cafezais (se estivéssemos no tempo da apanha do café, era só abrir a janela e colher grãos dele, assim como fazemos no Fundão com as cerejas), estamos a atravessar florestas de árvores enormes, com os troncos rodeados de “ninhos”, que depois percebemos serem, afinal, outras plantas a crescer dos troncos  e que dão a sensação que a qualquer momento pode saltar de lá um dos “meninos perdidos” do Peter Pan. Ou então estamos a olhar para um vale de árvores de copa redonda e achatada como uma folha de papel, as “madres del cacau”, que cria a ilusão de estarmos a ver uma enorme mesa, decorada com a mais fina toalha de crochet.
    Neste ponto da estrada, estamos a 2100 metros de altitude e passamos por dentro da nuvens.  Talvez as nuvens tragam pó mágico e façam com que tudo à nossa volta pareça inebriante. Ou talvez este sítio, este país, seja mesmo mágico.

    GUIA PRÁTICO
    Quando ir
    Na época seca, entre Maio e Outubro, mais mês, menos mês, que isto das alterações climáticas parece que também já afectou Timor.
    Como ir
    Há várias hipóteses e há muitas equações a fazer. A opção mais vezes adequada é voar com a Emirates, sendo o percurso Lisboa-Dubai-Singapura, ou Bali. Mas há voos para Singapura pela Swiss Air (Zurique), Air France (Paris) ou KLM (Amesterdão). A Qatar também voa para Bali mas para isso temos de ir a Madrid ou Londres, entre outras opções. Por norma, voar de Bali para Díli é mais barato do que de Singapura. Para qualquer dos casos, a Air Timor é a melhor opção. Os preços variam muito. Mas a viagem completa pode custar, com sorte, 1200 euros.