sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Noirmoutier, o que é que esta ilha tem?

Tem uma aura especial, praias semi-adormecidas, produtos de excepção e Alexandre Couillon, um chef de terroir talentoso e persistente que conta com duas estrelas Michelin. Ah!, e também tem, agora, um episódio Chef’s Table que documenta a relação entre ambos.


Quando David Gelb se senta ao nosso lado na mesa do restaurante La Marine, em Noirmoutier, não consegue evitar o contentamento: “Uau, finalmente estou aqui!” Gelb é o autor da aclamada série documental Chef’s Table, cuja terceira temporada, inteiramente dedicada a cozinheiros franceses, acaba de estrear na Netflix. O nova-iorquino, de 33 anos, não realizou o episódio dedicado ao chef local Alexandre Couillon, mas acabara de o editar e estava desejoso de observar in loco tudo o que vira no ecrã.

Noirmoutier é uma ilha pacata meio parada no tempo. Situada na região do País do Loire, na costa atlântica francesa, a sua paisagem natural e o aspecto cuidado e discreto do casario dão-lhe uma aura especial. Talvez porque o local se afaste da ideia comum que temos de uma estância balnear. Por aqui não há grandes hotéis, nem o turismo de massas associado. E ainda que a população (com pouco mais de oito mil habitantes) aumente exponencialmente em Agosto, o local mantém uma certa pacatez e um ambiente familiar.

A ilha é plana e pequena (45km2) e a paisagem uma recompensa que convida a pedalar. Por isso não é estranho que se dê maior uso à bicicleta em detrimento do carro e, não raras vezes, com a família atrelada. Aliás, este é o meio de transporte ideal para vaguear por vilarejos, atravessar campos e os seus canais, as salinas, o Bois de la Chaize, o pontão da Reserva Natural de Mullembourg ou uma das graciosas praias de areia fina e mar sereno azul. Em termos geográficos, estamos quase na costa oposta ao Mediterrâneo, embora a temperatura (incluindo a da água), a cor do mar e as casas de paredes brancas e telhados de tijolo, aproximem os dois territórios. Ou, pelo menos, mais do que poderíamos imaginar.

Da terra e do mar


Sabendo o propósito da viagem, o jovem motorista que nos conduz do aeroporto de Nantes ao nosso destino surpreende-nos com um conselho. “Não deixem de provar as batatas de Noirmoutier.”

Já no quarto do hotel, ao procurar restaurante para jantar num guia gastronómico local, lá encontro a menção especial à “mais marítima das batatas”, entre uma dúzia de especialidades e produtos de referência regionais. Ao que parece, os solos arenosos adubados com as algas recolhidas na maré baixa conferem ao tubérculo uma característica peculiar: o sabor ligeiramente salino. Entre as variedades cultivadas na ilha, destaca-se a la bonnote, tão valiosa e apreciada que o guia alerta para que se verifique a existência do logótipo da cooperativa agrícola local na embalagem, não vá estar-se a comprar uma imitação. É que a “Rolls Royce” da terra de Noirmoutier é recolhida apenas durante uma dezena de dias, em Maio, e o seu período de conservação é curto.

A noroeste da ilha, em L’Herbaudière, encontramos o principal porto de pesca local. Em tempos foi um grande centro da indústria conserveira de sardinha. Todavia, a escassez deste peixe encerrou o negócio e, hoje, os 60 barcos de pesca existentes dedicam-se, sobretudo, à apanha de variedades nobres, como o robalo, a dourada ou o linguado, e ainda a lagosta ou o lavagante.

Um pouco por todo o lado vêm-se placas toscas a anunciar a venda de ostras. Os registos revelam a sua introdução na área no inicio do século XIX, mas a actividade começou a desenvolver-se sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. De sabor elegante e levemente iodado, as ostras de Noirmoutier apresentam uma tonalidade azulada, devido à micro-alga blue navicula que se desenvolve na zona. Estas ostras são “semeadas” no seu habitat natural, em redor da ilha, onde permanecem durante três anos. Depois desse período retiram-se para valas e passam à fase de maturação, sendo afinadas de acordo com as características pretendidas por cada produtor. Todos os anos saem de Noirmoutier cerca de mil toneladas do molusco. Contudo, este é ainda um trabalho com uma forte componente artesanal, tal como acontece com a actividade levada a cabo nas salinas de onde se extrai a delicada e clara flor de sal, rival da famosa vizinha de Guérande.

Comida simples

A consulta do guia de restaurantes locais leva-me para o centro histórico de Noirmoutier-en-L’Île, a principal localidade. É quinta-feira e, apesar de estarmos em época alta (Julho), são vários os restaurantes fechados. É o caso do Le Cass’poï, junto ao castelo, que oferece uma cozinha de mercado despretensiosa com produtos de temporada.

Procuro um lugar simples, dado querer guardar-me para a cozinha de Alexandre Couillon, do La Marine, no dia seguinte. A uma centena de metros dali, um pequeno bistrot, o Le Petit Blanc, dá sinais de vida. Ainda é cedo. A França joga nessa noite contra a Alemanha a possibilidade de disputar a final do europeu contra Portugal e, talvez por isso, consigo um dos poucos lugares disponíveis. O lugar serve comida lionnaise e é sem dúvida um bistrot: espaço apertado e aconchegante; ele na cozinha e ela na sala; menu fixo, escrito na ardósia, com seis ou sete propostas (para pedir duas ou três) e vinho da casa. Escolho a terrina de fígado de porco com pistácios e molho bearnaise, de entrada; um filete de dourada com gratinado de beringela como prato principal e o gâteau lyonnais et son coulis d’abricots de sobremesa. Bolo esponjoso com calda de açúcar e amêndoa, pera e molho de alperces, combinam? Sim, bastante. Tal como a experiência no geral. No fundo, era o que pretendia nessa noite: comida simples, bem elaborada e com sabor, vinho a jarro potável e serviço diligente. Tudo por menos de 30 euros.

Deixo o restaurante e pedalo até casa, ainda com tempo de sobra para parar num café. Acompanho um pouco do jogo, mas o local está lotado e faço-me ao caminho antes de terminar. A meio do percurso, soam foguetes de alegria. A França está na final. Que pena não ficar para ver esse jogo...

Couillon e a ilha no prato

As actividades ligadas à terra e ao mar, bem como o turismo, têm ajudado a reter uma boa parte da população de Noirmoutier durante todo o ano. É o caso dos Couillon.

O pai fora marinheiro e pescador e a mãe costureira. Quando Alexandre tinha seis anos, a família comprou um café a que chamaram La Marine. Abriam apenas no Verão e serviam pratos para turistas: peixe, marisco e tarte de maçã. Eram pratos bem simples, reveladores de que a mudança de vida dos progenitores tinha sido mais uma oportunidade surgida do que propriamente uma vocação.

Alexandre Couillon viveu na ilha toda a sua infância e boa parte da adolescência de uma forma muito livre, “como um Tom Sawyer”. Estudar não era a sua praia, o que o levou cedo, com 17 anos, a procurar um emprego de forma a canalizar toda a sua energia. Acabou por bater à porta de um chef bretão que lhe ensinou o ofício e lhe deu disciplina. Foi esse o momento da viragem, o momento em que decidiu que era aquela a direcção que queria tomar.

Um dia, estava a trabalhar na cozinha de Michel Guerárd, em Eugénie-les-Baines (o Les Prés d’Eugénie, três estrelas Michelin), quando recebeu uma chamada. Era o pai. Queria dizer-lhe que estavam a pensar vender o La Marine, mas que se quisesse poderia ficar com o restaurante. A sua reacção imediata foi dizer que não, uma vez que pretendia continuar a evoluir ao lado de grandes chefs. Contudo, ficou a matutar sobre o assunto e, com a insolência própria de quem tinha pouco mais de vinte anos, começou a pensar que aquela talvez fosse uma boa ocasião para se afirmar e, quem sabe, colocar Noirmoutier no mapa gastronómico. Fez então um pacto com a sua mulher, Céline, natural da ilha como ele e namorada desde os tempos da escola. Ficariam durante sete anos. Se passado esse tempo não resultasse, pegava nas coisas e procuraria emprego noutro restaurante. Assim foi. Ligou ao pai e seguraram o restaurante. Porém, não tinham grande noção no que se tinham metido. O francês queria fazer uma cozinha de autor mas Noirmoutier não era um destino gourmand e, após o Verão, os turistas desapareciam. Como se não bastasse, Couillon sentia-se perdido, sem um rumo a seguir.

Apesar das dificuldades, o restaurante foi-se impondo, ainda que tenuemente. Continuavam a trabalhar que nem uns loucos, sobretudo fora da estação alta, quando o staff era reduzido ao mínimo. Tinham passado seis anos e estavam prestes a desistir. Porém, quando se aproximavam do período limite chegou a boa notícia: o guia Michelin acabara de lhes atribuir uma estrela.

O galardão permitir-lhes-ia respirar, mas Alexandre Couillon não estava contente com a sua cozinha e começou a questionar-se. Achava que o que estavam a fazer era muito clássico, queria repensar tudo e ter uma proposta mais contemporânea e criativa.

Uma das decisões que tomaram foi a de construir um novo espaço, sendo que o antigo mudaria de nome, passava a chamar-se La Table d’Elise e teria uma proposta mais tradicional e acessível. Todavia, continuava a faltar uma ideia central para a cozinha do novo La Marine. Surgiam pratos novos, mas alguns deles confusos, com muitos ingredientes. Couillon continuava insatisfeito. Havia que simplificar e encontrar um caminho. Até que um dia, um erro feliz mudou tudo. Pedira a um estagiário que fizesse um caldo de lula mas esquecera-se de lhe dizer que deveria retirar a tinta, o que acabou por dar origem a um caldo intenso e escuro. Ao olhar para o resultado, o chef francês teve uma espécie de epifania: começou a lembrar-se do derrame do petroleiro Erika, um caso dramático que anos antes acontecera na ilha, com graves consequências nos recursos marítimos da área.

Couillon pegou no caldo, reduziu-o até criar um molho denso e deitou-o sobre uma ostra. Chamou-lhe “ostra negra Erika”. A combinação agradou-lhe, quer em termos de sabores, quer visualmente. Estava encontrado o caminho: criar e confeccionar pratos mais simples, com ingredientes locais e que contem a história da ilha. Em 2013, o La Marine conquistou a segunda estrela Michelin e Noirmoutier entrou no mapa.

À mesa do La Marine

A ostra Erika teria de ser um prato obrigatório no almoço entre a imprensa e David Gelb. De facto, trata-se de uma proposta extraordinária. Na sua apresentação minimalista (negro sobre branco), na textura densa (molho) e delicada (ostra) e no sabor intenso, mas elegante. Tinha sido precedida de outro prato brilhante, “conchas e crustáceos a bordo”, um caldo perfeito com os melhores mariscos que se apanham nas águas da região. Como se não bastasse, ainda chegou à mesa um lavagante grelhado, com cenoura e capuchinha. Porém, Alexandre Couillon também possui grande afinidade com peixes ditos menos nobres da zona, como é o caso da cavala — que comemos fumada e servida numa espinha limpa e ainda (triturada) em “trufa” com café —, ou do badejo de textura delicada, que nos serviu com curgete, melão e leite de cabra.

Os produtos da terra são igualmente a sua grande paixão, ou não tivesse uma horta própria que fornece ao restaurante quase tudo o que precisa. Não é a época da la bonnote, mas a batata teria obviamente de estar presente no menu, fosse numa textura cremosa, num dos snacks iniciais, ou como acompanhamento de uma pintada. Outro vegetal que merece a preferência de Couillon é a beterraba. No almoço tivemos direito a ela como elemento principal de numa pequena tartelette e, também, como acompanhamento de uma lula de textura e sabor exemplares.

Os pratos do chef francês seguem a linha evolutiva de uma cozinha mais naturalista centrada no produto e não tanto na técnica. Quer dizer, a técnica e uma certa complexidade estão lá, mas não para serem exibidas na cara do cliente. A parte doceira segue o mesmo conceito de união com a ilha. Por exemplo, uma das sobremesas, “balada no Bois de la Chaize”, é uma representação do bosque local, com um gelado que leva resina de pinheiro, servido sobre “musgo” (sponge cake) de chá verde e “terra” de chocolate.

Na conversa com David Gelb (ver texto nestas páginas), o autor de Chef’s Table refere que um dos critérios para fazer parte da série se prende com a personalidade do chef e de uma boa narrativa que este tenha para contar. Alexandre Couillon tem essa história e coloca-a no prato com mestria. A mesma mestria com que Gelb e a sua equipa a servem no ecrã.

GUIA PRÁTICO

Como ir

Tanto a TAP como a Transavia voam regularmente para Nantes. Daqui a Noirmoutier distam 77km, que se percorrem de carro em pouco mais de uma hora ou de autocarro em 1h40. Na ilha existem alguns transportes públicos, mas a bicicleta é o meio ideal de locomoção.

Onde dormir
Não há grandes hotéis de luxo ou de cadeias conhecidas, mas há vários lugares confortáveis e com um certo charme, como o Ancre Marine, o La Chaize ou o La Villa en l’Île.

Onde comer
O La Marine (5 Rue Marie Lemonnier; tel.:02 51 39 23 09) é sem dúvida o principal restaurante da ilha. Contudo, para além deste duas estrelas Michelin, a ilha conta com um conjunto de pequenos restaurantes de cozinha simples e preço mais acessível que servem produtos da região.

A Fugas viajou a convite da Netflix

Fonte: Fugas