sexta-feira, 25 de março de 2016

Viajantes: confiar é preciso, até certo ponto


O que é essencial numa viagem? A confiança: em nós, sempre, e nos outros, com cautelas, dizem os viajantes com quem a Fugas conversou.
Cristina Fernández: Passeio pelo mundo
Brinca dizendo que nasceu a viajar, Cristina Fernández, sevilhana nascida em Londres. Viajou sempre e encontrou o seu trabalho de sonho quando se tornou jornalista do programa televisivo Andaluces por el mundo, o pioneiro destafranchise em Espanha. Quando este terminou, continuou a trabalhar em televisão e a viajar sempre que o trabalho permite (e a escrever no seu blogue de viagens). Com o namorado, em grupo, cada vez mais sozinha, sobretudo nas viagens mais longas. “Tenho o meu ritmo, posso fazer o que quero a cada momento, sem depender de ninguém. E falo muito mais com os locais.” Mesmo que não falem a mesma língua, como aconteceu numa viagem de camioneta na Tailândia, onde passou oito horas a “conversar” com a senhora ao seu lado. “Ela até partilhou a comida que trazia”, recorda. Em Marraquexe, o facto de ir cumprimentando quem passava, salamu aleikum, não só a livrou de muito assédio como lhe valeu convites para pequenos-almoços, chás. Não evitou, porém, que em Marraquexe, tenha sido perseguida por um homem “con muy mala pinta”. “Esteve meia manhã atrás de mim e só me dizia coisas em árabe, que eu não entendia. Acabei por entrar num museu e vi que ficou à porta. Falei com os funcionários do museu que saíram e lhe disseram algo. Quando saí já não estava.”
Com 33 anos, Cristina não tem dúvidas: viajar é o que mais gosta de fazer. E às vezes confia demasiado nela própria, o que a deixou — e ao namorado e a outro casal — em situação perigosa numa viagem pelo Botswana e Namíbia, quando decidiram fazer um safari livre. Num dos parques nacionais do Botswana, onde se pode ficar o tempo que quiser, um dos mapas que levavam não assinalava um rio, por onde passaram ao anoitecer, hora de banho dos elefantes. Encontraram várias manadas e um deles, com crias, decidiu protegê-las. Aproximou-se do jipe e ficou a cerca de 10 metros — eles lá dentro durante 30 minutos, imóveis, à espera que ele se lançasse contra a viatura. Acabou por afastar-se e eles seguiram. “Tínhamos lido guias, vimos como se deveria reagir perante animais selvagens, mas nada nos preparou para aquilo. Fomos muito inconscientes”, assume. À distância, contudo, diz que viveu uma “verdadeira aventura”. Nessa mesma viagem, desta vez em Windhoek (capital da Namíbia), outra aventura, menos selvagem. Foi levantar dinheiro a um multibanco, sozinha, e foi abordada por um rapaz que a queria ajudar, dizendo como colocar o cartão, “de outra forma não funcionaria”. “Eu estava a confiar, mas depois reparei que três mulheres haviam parado a observar e faziam não com a cabeça.”
Ou seja, há que “confiar até certo ponto”, conclui, e é o que faz nas suas viagens, que são como um “passeio pelo mundo”. Em Chiapas (México), pleno território zapatista, estava a chegar a San Cristóbal de las Casas, por uma estrada péssima e noite cerrada. Passaram três carros no sentido contrário e todos fizeram sinais de luzes, ela sem saber porquê. Até que vê um homem deitado no meio da estrada. “Tive que travar a fundo”, recorda, “e ficámos [ia com o namorado] sem saber: será que se passou algo ou é uma armadilha?” Tomada pelo nervosismo, começou a chorar, mas decidiram seguir a viagem. Mais tarde veio a saber que aquele cenário era comum — “apenas” homens bêbados. A mesma decisão tomaram em Ilhéus (Salvador da Bahia), quando passaram de carro por dois homens atacando-se na beira da estrada com “umas espécies de foices”. “Não sabia como iam acabar, mas não podíamos arriscar”.
Quando prepara uma viagem, Cristina informa-se muito, vê o que pode fazer, visitar, coisas diferentes, não só o típico. Marca apenas a primeira noite de hotel: “Tenho ideia do que vou fazer, mas nada marcado.” Gosta de perguntar aos locais e às vezes segue os conselhos. Já teve boas e má surpresas. No México, a experiência foi frustrante, na Birmânia, por exemplo, “todo un acierto”. E um risco, porque não só seguiram indicações como foram de mota com os homens que se ofereceram para ser os seus condutores durante a sua estadia. “No início pensámos que nos queriam enganar, acabámos por aceitar quando nos prometeram levar a sítios fora das rotas turísticas”, conta. Estavam num país desconhecido, com uma língua desconhecida e homens desconhecidos. “Descobrimos templos abandonados impressionantes, onde não havia um turista. Percorremos caminhos rurais e parámos em aldeias completamente isoladas. Foi uma experiência inolvidável”, recorda, “tanto que todos os dias em que estivemos em Mandalay contámos com eles”. Ainda na Birmânia percebeu como as pessoas se alegram por estrangeiros se interessarem pelo seu país. “Fui comprar uma garrafa de água. Conversa puxa conversa, deram-me fruta, uma pulseira e convidaram-me para jantar.”
Custa-lhe lembrar-se de más experiências — “acho que tenho tendência a esquecer” — mas recorda-se de no Uruguai ter de pagar 60 euros à polícia para não serem multados. “Ficámos horas paradas numa estrada, eles a dizerem que chamariam um juiz. Mas nunca mais chegava ninguém. Acabámos por pagar.” E em Ho Chi Minh (Vietname) foi ao contrário: perante a ameaça de chamar a polícia, um taxista que tentou cobrar-lhes mais do dobro do que sabiam, por experiência, ser o valor da viagem, acabou por desistir. Recentemente, na Tailândia, tinha marcado uma viagem de barco para umas ilhas mais pequenas a partir de Ko Chang. Quando a hora chegou, estava muito mau tempo. “Pensei que o barco não saía.” Saiu e pouco tempo depois estava tudo a vomitar. Ela via os olhares da tripulação e sabia que a situação não era boa. Chegou a olhar em volta a ver se via uma ilha mais próxima para atirar-se à água. “Lo pasé fatal, muy mal”, confessa. Chegou ao destino final e soube que todas as travessias tinham sido canceladas — a dela “furou” o cancelamento. “Já via os cabeçalhos dos jornais: ‘50 chineses e duas espanholas mortas num naufrágio na Tailândia’”, brinca agora.
E agora também confia, sem dúvida, mais nos outros. “Ouvimos desde pequenos que temos de estar alerta, não confiar, não falar com estranhos. Mas vamos aprendendo que há mais pessoas boas que más. Com sorte cruzas-te com as boas.”

Mariana Oliveira e André Gomes: “Confiar: nos outros e em nós”
Às vezes a simpatia tem segundas intenções. Mariana Oliveira e André Gomes preferiram jogar pelo seguro e não esperaram para ver. Aconteceu em Hoi An, no Vietname, quando pararam as bicicletas para consultar o mapa. Queriam chegar à praia. Pára uma mota e uma rapariga vem ter com eles — o condutor segue e estaciona mais à frente. Acenderam-se os sinais de alerta: “Algo se passa!” A rapariga tenta ajudá-los. Sigam pela direita, indicou. “Agradecemos e fomos pela esquerda”, contam Mariana e André por email, a partir da Nova Zelândia, onde estavam desde Dezembro (agora já estão na Austrália). “E não é que tínhamos razão?” Contudo, o encontro não ficou por aí. Duas horas de pedaladas depois, eis que avistam agora apenas o rapaz na mota e mais à frente outro rapaz, também de mota. Ambos falavam ao telemóvel. “Olhámos um para o outro, invertemos a marcha e voltámos para ohostel.”
A professora de Filosofia de 36 anos e o representante de vendas de 35 estão a meio da grande aventura a que se propuseram (Indonésia, Tailândia, Laos, Vietname e Camboja já ficaram para trás). “Decidimos que seria bom para a nossa sanidade mental fazer uma pausa de um ano”, explicam. Queriam conhecer novas culturas, aprender com realidades diferentes e mudar a tónica dos bens materiais para os bens humanos. E uma coisa já sabiam: tinham de respeitar os locais. “Nós é que estamos ali a mais, aquele espaço é deles. Nós é que somos os diferentes. Também seguimos a máxima popular ‘Em terra onde fores, faz como vires fazer’.” Isso ajudou-os numa viagem num comboio nocturno, também no Vietname. Ao chegarem aos seus lugares, encontraram um compartimento com cerca de dois metros quadrados e seis camas. Estavam já lá cinco pessoas: um homem trazia o filho, de seis anos, que estava numa das camas destinadas ao casal. As contas foram rápidas: “Seis camas, cinco vietnamitas, dois portugueses. Alguém estava a mais”. Decidiram que eram eles e então instalaram-se no corredor (apertadíssimo), sem janelas que abrissem e com baratas (bastantes) a passear, para uma viagem de 12 horas. Uma vez aí, uma das revisoras, primeiro desconfiada e com cara de poucos amigos, percebeu que os “estranhos” tinham cedido a cama a uma criança — duas horas depois tinham dois lugares sentados, limpos e com janela que abria.
Quando começaram a preparação da viagem, Mariana e André tiveram muitas dúvidas e uma certeza absoluta: iam à Nova Zelândia e iam aproveitar o visto de três meses. Antecipavam o que encontraram, uma “lufada de ar fresco, quer pelas paisagens, autênticas obras de arte, quer pela cultura que se vive”. “É incrível a forma como as pessoas respeitam a natureza e os animais”, contam. E aprenderam “que é possível confiar”, num país em que as pessoas têm a prática de deixarem as casas e os animais de estimação ao cuidado de desconhecidos. Mariana e André têm sido esses desconhecidos, através da rede de house-sitting. Na primeira vez, várias dúvidas pairavam sobre eles: será que as informações (condições e localização das casas, por exemplo) da plataforma online onde estão inscritos estavam correctas? A verdade é que a realidade superou as expectativas e na Austrália também são house-sitters.
No entanto, a Nova Zelândia não foi livre de sustos. Excessos de confiança: após uma caminhada de uma hora, chegados a uma “bela praia”, cheia de turistas, não hesitaram em dar um mergulho. A roupa e a máquina ficaram em cima de uma rocha e de repente viram duas raparigas aproximarem-se para tirar fotografias. “Numa paisagem tão bonita não se escolhe uma rocha cheia de tralhas, a não ser que haja lá algo de interessante”, pensaram, por isso, voltaram à rocha.
Alguma confiança, com bom resultado, sentiram no voo entre Banguecoque e Bali. Emprestaram 50 dólares ao casal chinês que seguia ao lado deles e que havia pedido comida: no avião só aceitavam bahts ou dólares e eles só levavam rupias indonésias. “Ficaram maravilhados! Quando o avião aterrou, ajudaram-nos na burocracia para a entrada no país, devolveram-nos o dinheiro e deixaram-nos os contactos para irmos jantar a casa deles em Banguecoque ou Taiwan.”
Poucos meses na estrada já lhes permitiram perceber alguns truques com que se tenta enganar incautos, como quando apanharam um táxi, noite instalada, em Nha Trang. O taxista pega na nota que lhe deram, coloca-a na carteira e retira outra, furada, dizendo que é falsa. “Dissemos que íamos chamar a polícia e de repente a nota deixou de ser falsa e recebemos o nosso troco.” Também por isso esta viagem tem contribuído, “e muito”, para a auto-confiança deles. “Deixámos de recear o desconhecido. Sabemos que ainda falta um longo caminho, mas temos confiado em nós e nos outros e a resposta tem sido francamente positiva. Portanto, vamos continuar com a nossa táctica: confiar, nos outros e em nós.”

André Parente: A importância do instinto
“A primeira vez que cheguei à Indonésia tive um impulso para ir embora logo no dia seguinte. Muita confusão, idioma muito diferente, pessoas aparentemente a tentar enganar-me, trânsito caótico, motas por cima dos passeios, ruas sujas com oferendas... Respirei fundo, mudei-me para um hotel melhor e fiquei alguns dias só a observar, sem fazer praticamente nada além de dormir, comer e observar. Depois habituei-me e hoje em dia a Indonésia é dos meus destinos preferidos.” André Parente, 42 anos, não esquece o choque cultural na Ásia, que durante os próximos meses é a sua casa. Quando falámos com ele estava na Tailândia, onde ia ficar um mês — hoje parte para o Camboja. Ou amanhã ou depois de amanhã. Tem medo de andar de avião e por isso sempre que pode utiliza transportes terrestres, não está tão preso a datas. “Sei que é irracional [o medo] porque também sei que é seguríssimo [o avião]. É mais perigoso o que fiz há pouco, ir à praia de mota, descalço e sem capacete. Ou andar de autocarro na Índia ou no Peru.” Por isso, André também não deixa nada ao acaso: anda com umas chapas, “tipo dos soldados norte-americanos”, ou uma pulseira com placa, com os seus dados — identificação, número de passaporte, apólice de seguro, número de emergência, tipo de sangue — e no bolso leva o cartão de uma clínica internacional local. “Se me acontecer algo, quem me encontrar saberá o que fazer. A maioria das pessoas pensará que sou alarmista, mas as histórias aqui...”
Estes são truques que André foi aprendendo com as viagens — e não são os únicos — que partilha num grupo do Facebook (Viajantes Independentes), onde procura dar informação e confiança a viajantes independentes. Aprendeu, por exemplo, que não há problema em chegar a um sítio às 3h da manhã — “pedes um táxi para o melhor hotel da cidade, o preço vai ser demasiado caro, mas se pedires para ficar no lobby até amanhecer não recusam” — e que quando se sai de um autocarro e comboio o melhor é ficar para trás enquanto os taxistas vêm em busca de passageiros — “esses são os que podem tentar enganar-te”. Mas isto só com a experiência se aprende e ele já foi muitas vezes enganado em táxis.
Afinal, são muitas as viagens que os seus passaportes testemunharam. Sozinho, viajou pela primeira vez para a Austrália e Nova Zelândia, em 2007 empreendeu a grande aventura, um ano pelo mundo. Nos últimos anos tem dividido o seu tempo entre um ano em casa e meio ano a viajar — conseguiu conciliar o trabalho com as viagens, já que o faz online (marketing ewebdesign). Se há algo em que tem de ter absoluta confiança é nas ligações à Internet: consulta fóruns online para avaliar e de cada vez que chega a um alojamento verifica tudo antes de instalar-se. Agora no Camboja, vai para uma ilha e não tem a certeza de como será a Internet, mas está preparado: “Posso ficar uns dias sem trabalhar, mas tem de ser por determinação minha.”
Não é apologista do “vamos embora e logo se vê”. “É demasiado arriscado”, considera, “e eu gosto de planear”. “Sempre fui uma pessoa bastante confiante. Penso muito sobre os assuntos, pondero, crio planos b e backupsde emergência para tudo. Mas na hora de decidir e implementar, não penso muito nisso... Confio no instinto e faço!” Porque, por mais planeamento que faça, já lhe passou de tudo, já foi assaltado, já perdeu aviões e comboios, já ficou sem hotel.
Nas vezes em que não confiou no instinto, nem sempre as coisas lhe correram bem. Como há dois anos, numa guest house na Nicarágua. O preço era óptimo, mas sentiu algo estranho, que depois associou a uma troca de olhares da recepcionista. “Decidi ficar e fui assaltado. Não são coisas esotéricas mas deveria ter ouvido [o instinto].” Por outro lado, quando recebeu o convite para ficar numa casa na Nova Zelândia também ficou alerta, porém decidiu aceitar. “Tive uma experiência rara, de passar uns dias com uma tribo maori.”
Com tanto planeamento, o ponto fraco de André é quando viaja acompanhado. Baixa um pouco a guarda e isso já o colocou em situações complicadas. Na Costa Rica assaltaram-lhe o carro. “Fui desleixado, deixei as coisas lá”, confessa. Roubaram-lhe tudo. Sem dinheiro, a 500 quilómetros da capital, foi ajudado: num hotel deixaram-no dormir — “se tiver dinheiro depois paga, se não, não” —, um casal alemão, aí no hotel, ofereceu dinheiro — ele recusou, mas ainda assim surgiu-lhe um envelope debaixo da porta. Conseguiu chegar a São José e dois dias depois já tinha dinheiro, passaporte e continuou viagem. “Na altura foi dramático, hoje penso ‘ainda bem que aconteceu’. Percebi que nada é tão grave assim”, relativiza.
Apesar de tudo, assume-se como desconfiado em relação aos outros e acredita que em viagem é bom que olhem para ele e não tenham vontade de o roubar. “Quero parecer o mais pelintra”, brinca. Do que não abdica é da confiança em si. “Depois de tantas situações, sei que tudo se resolve e nada é tão problemático como pode parecer. Para além de situações de saúde ou acidente, tudo se resolve com relativa facilidade... e alguns dólares! Hoje em dia não tenho receio de ser ‘largado’ em qualquer sítio porque sei que se há lá gente é porque há transporte, sítio para dormir e comida.”
Anabela Valente e Jorge Valente: “Vamos com as pessoas”
A história começa no Luxemburgo, lugar central da diáspora portuguesa e local onde Anabela Valente e Jorge Valente se conheceram: ela chegada para trabalhar nas instituições europeias, ele nascido no grão-ducado. Tornaram-se companheiros de vida e das viagens que começaram a fazer de mota. Primeiro na Europa, até que há dois anos pediram uma licença sabática e partiram para seis meses na América do Sul, sempre de mota. “E com muita calma, para conhecer pessoas e passear”, explica Anabela, via Skype (na altura, Jorge estava na Ucrânia, em missão com a Cruz Vermelha). Foram “minimamente” preparados e com receio q.b.. “Problemas há sempre, sobretudo se viajas de mota. Cair, por exemplo: não há um ‘se’ caíres, há ‘quando’ e ‘quantas’ vezes. E isso dá azo a muitas aventuras.” Essas aventuras mudaram-lhes a vida: agora têm uma revista semestral (Diaries of: cada número, um país) e deixaram os empregos para viajar.
Curiosamente, a maior aventura que viveram nesse périplo sul-americano não teve relação com a mota — mas a ela iremos. Já no final da viagem, Anabela e Jorge são apanhados quase no epicentro de um terramoto de 8,8 na escala de Richter, seguido de alerta de tsunami. Estavam em Iquique (Chile), numa estalagem em frente ao mar, eram quase 21h, e preparavam-se para dormir. A terra começou a tremer e eles saem para a rua, descalços, quase sem roupas, correndo quilómetros, seguindo os sinais de evacuação em caso de tsunami. A noite foi passada entre famílias chilenas, que lhes providenciaram roupa e comida. No dia seguinte, Anabela percebeu que tinha os pés cravejados de vidro e não quis voltar a dormir na estalagem, com medo que uma réplica a obrigasse novamente a correr. Uma família chilena abriu-lhes a sua casa, situada num ponto alto, e eles aceitaram sem hesitar. Em boa hora, porque houve novo sismo, desta vez de 7,7, mas não tiveram de fugir. “É incrível a generosidade das pessoas em situações limite”, reflecte Anabela, “nas horas difíceis em viagem temos sido sempre ajudados.”
E vamos à mota e aos imprevistos. “Nunca podemos marcar hotel, por exemplo, porque não sabemos até onde conseguimos chegar.” Uma vez, num anoitecer na Patagónia, acabaram a montar tenda no jardim de um morador de um local isolado, onde só havia um hotel muito caro e três ou quatro casas. “Pedimos e ele disse logo que sim.” Situação mais complicada foi vivida no Chaco, em território paraguaio. Sabiam que era uma zona muito desertificada e quiseram certificar-se que teriam lugares para abastecer a mota e as condições das estradas. “Diziam sempre que ‘es fea’ [em mau estado], mas que dava para fazer.” Seguiram viagem e a correia da mota partiu. Em menos de uma hora passou uma pick-up. Os dois homens ofereceram-se para levar a mota até à povoação mais próxima. “Eu estava bastante renitente”, assume Anabela. Contudo, eles lá os levaram até um “mecânico amigo”. “Pensei ‘ok, vai sair caro’. Mas não. Acabámos a almoçar com eles e o arranjo ficou-nos por menos de 10 euros.”
De um seguro de mota expirado dois dias antes, Anabela e Jorge encontraram uma das suas anedotas preferidas. Estavam perto da fronteira da Argentina e como nunca tinham sido controlados foram arriscando. Correu mal e Jorge teve de ir até à localidade mais próxima tratar dos papéis. Para lá arranjou boleia facilmente, para voltar teve mais dificuldade e demorou umas horas. Entretanto, Anabela tinha ficado sozinha, já que a brigada policial, tendo acabado o turno, abandonou o local. “Com tudo isto já estava aflita e quando vejo chegar uma carrinha de onde saem dois homens fiquei com medo.” Afinal era o Jorge, que viajou com um caixão.
Certamente que uma das anfitriãs de couchsurfing que os recebeu nesta viagem também terá uma anedota para contar. Era a sua iniciação na rede de acolhimento e eles perceberam que na primeira noite ela não largava o telemóvel. Uns dias depois, a confissão: eram mensagens de família e amigos a certificarem-se de que estava tudo bem, de que Anabela e Jorge não eram “uns psicopatas”.
Já encontraram polícias que os tentaram extorquir, taxistas que os tentaram enganar, mas Anabela e Jorge acreditam que a sua experiência lhes tem ensinado que as pessoas são, por natureza, “boas e generosas”. “Vimos darem tanto a estranhos que quando alguém tenta tirar imaginamos que estão numa situação difícil. Mesmo sabendo que nos estão a cobrar mais do que a um local, se achamos que é um preço correcto, não vale a pena chatearmo-nos.” Cada vez confiam mais em estranhos. E viajam por forma a conhecê-los. “Não levamos GPS, de preferência temos um mapa muito básico, porque assim temos pretexto para falar com as pessoas. Às vezes pedimos direcções e acabamos por não ir aos sítios. Vamos com as pessoas.” Vamos ver onde as pessoas os levam por Cabo Verde, onde andam por estes dias, e nos próximos anos, em que tencionam chegar à Ásia.
Fonte: Fugas

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