terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Cuenca, a cidade com queda para o abismo

Rodeada pelos rios Júcar e Huécar e com as casas suspensas numa base rochosa que desafiam todas as leis da física, a cidade espanhola abraça séculos de história no meio de um enclave natural e integra há precisamente 20 anos a lista de Património Mundial da UNESCO.



Como um pobre em frente de um prato de comida, guardando a parte mais deliciosa para o final – assim me sentia eu, naquela tarde em que, em vez de ir directamente olhar as casas suspensas de Cuenca, resolvi caminhar junto a uma das margens do rio Júcar, admirando as cores de Outono pelo meio das árvores que se desnudavam e onde jovens casais conjugavam o verbo amar e as mães o verbo cuidar, os desportistas o verbo exercitar e os mais velhos o verbo descansar.
O campanário da igreja da Virgen de la Luz, na paróquia homónima, reflecte-se nas águas do rio que hoje corre para o Mediterrâneo e há milhões de anos desaguava no Atlântico, depois de se juntar ao Guadiana — quem gosta de cinema e, especialmente de Pedro Almodóvar, terá identificado o Júcar no momento em que Raimunda, interpretada por Penelópe Cruz, lança um frigorífico para as suas águas, com o marido, que matara em casa, no interior.
Cuenca, para muitos apelativa apenas por meia dúzia de atracções, tem a particularidade de convidar o viandante a uma errância solitária e muito mais abrangente do que fazem crer os folhetos turísticos — e situada como está, a quase mil metros de altitude, com as suas subidas e descidas constantes, as suas colinas e as suas ruas que parecem conduzir ao céu, é uma cidade que, por estranho que pareça, estimula os passeios a pé, à aventura sem guias ou mapas, a uma descoberta demorada dos seus mais íntimos recantos.
“Cuenca é uma cidade para digerir, para mastigar devagar, como uma antiga merenda (...). Ou para beber de um gole, como o mau vinho de uma boa bebedeira, essa bebedeira que nos dá para cantar e para jurar amor eterno a cada pedra, a cada insecto, a cada pássaro, a todas as criaturas”, assim a definia Camilo José Cela, Prémio Nobel da Literatura em 1989, num artigo a que deu o título Cuenca abstracta, a da pedra gentil
Da ponte de pedra de San Antón, sobre o Júcar, no lugar onde em tempos existiu uma outra, construída pelos muçulmanos, avisto as casas viradas ao sol, todas muito próximas umas das outras, formando um bairro que parece respirar tranquilidade e não recebe nem uma ínfima parte dos turistas que calcorreiam as ruas empedradas e gastas pelo tempo da parte alta da cidade. Conhecido, também, como o bairro de San Antón, ainda há bem pouco tempo gozava de uma fama que contribuía para afastar os curiosos e que assentava na marginalidade e num estado de semi-abandono, motivando inclusive um plano da edilidade para o demolir.
No início da década de 1960, a população foi mesmo transferida para outro bairro de Cuenca mas as suas casas, ao longo de ruas estreitas ou trepando pela ladeira que conduz ao Cerro de La Majestad, não tardaram a ser ocupadas por grupos mais desfavorecidos. As obras levadas a cabo pelos políticos locais para melhorar as suas infra-estruturas e os serviços, bem como o projecto posto em prática para uma mais fácil integração apoiada nas vertentes urbanística, social e cultural, permitiram que San Antón fosse resgatado das trevas em que ameaçava mergulhar.
Com esta actuação, o bairro não só foi revalorizado como viu aumentar o número de empregos, a circulação de pessoas e afluência na zona de restauração na parte baixa, atraindo, por outro lado, artistas (desde os tempos do Califado de Córdova que Cuenca era conhecida em todo o Al-Andalus pela mestria dos seus artesãos) e estudantes de Belas Artes que, em conjunto com as associações locais — e beneficiando das excepcionais condições paisagísticas —, têm contribuído para que San Antón se tenha tornado nos últimos anos num local de visita obrigatória em Cuenca e não no bairro marginalizado no qual a simples menção do nome provocava temores entre a população. 
Do Cerro de La Majestad avisto as casas suspensas. Uma vertigem.  
Catedral única
Regresso à margem do rio mas logo depois caminho por uma zona mais urbanizada que me leva, sempre a subir, à Calle de Alfonso VIII, com as fachadas dos seus antigos arranha-céus, nenhum deles com mais de quatro pisos, pintadas de cores vivas, de amarelo, de pastel, de azul, de vermelho, e alguns dos seus passeios preenchidos por grupos de jovens de copo na mão, gozando da tepidez do sol outonal. Alfonso VIII cercou a cidade, ocupada pelos árabes, durante oito meses até que, finalmente, esgotou as forças dos habitantes encurralados, incapazes de resistir à fome e aos constantes ataques.
Reza a história que foi a 21 de Setembro de 1177, data em que se celebra San Mateo, que o rei entrou e colocou pela primeira vez um pé em Cuenca — e reza a lenda que foi um pastor, Martín Alhaja, a quem terá aparecido a Virgem, que permitiu a passagem dos cristãos pela porta de Aljaraz (por ser o único que a conhecia), nos dias de hoje rebaptizada como porta de San Juan e que marca o início da parte alta da cidade.
Transponho os arcos e a fachada de estilo barroco do século XVIII que embeleza o edifício da câmara municipal e penetro na praça que se começa a animar ao princípio da tarde e vai explodindo de vida até que a noite substitua o dia. A Plaza Mayor, verdadeiro coração de Cuenca e em forma triangular, é dominada pela fachada da catedral, que a esta hora resplandece sob os raios de sol, adquirindo uma tonalidade de mel. As esplanadas estão cheias, as mesas repletas de tapas e de bebidas, a atmosfera tem algo de festivo mas nada mais há para celebrar do que a vida, neste sábado de temperatura amena e à hora em que todos os espanhóis gostam de sair à rua para beber um copo. Quando planto um olhar mais demorado na catedral, fico com a sensação de que está ali não apenas para ser admirada mas à espera de que alguém, entre a multidão, se lembre de terminar as obras. Na verdade, a parte mais alta da catedral de Nuestra Señora de Gracia, erguida no século XII, está por concluir devido ao desabamento da torre sineira em 1902.
Alvo de frequentes renovações, a catedral, com o seu estilo gótico normando, é única em Espanha do género e esconde, no seu interior, elementos decorativos de grande valor histórico, como os seus vitrais, a sua dupla charola (deambulatório), acrescentada nos séculos XV e XVI, o arco de Jamete, a elegante porta renascentista que permite o acesso ao claustro e que é considerada uma das mais monumentais do renascimento espanhol em interiores e, finalmente, entre paredes que também abrigam duas dezenas de capelas, o coro, com uma escultura em alabastro da Virgem, obra de Giraldo de Flugo, e uma imponente grade assinada por Hernando Arenas, um grande conhecedor da arte de trabalhar o ferro do século XVI.
Desde tempos de antanho que a vida em Cuenca sempre se desenvolveu em redor da Plaza Mayor mas com a tomada da cidade, nesse último quarto do século XII, os judeus passaram a ocupar a Calle de Zapaterías, enquanto os muçulmanos ficaram relegados ao seu bairro, na zona da Mangana, onde espero chegar lá mais para o fim da tarde.
O bairro do castelo
Partindo da praça e seguindo ao longo da Calle de San Pedro, vou primeiro ao encontro da parte mais alta de Cuenca, o Bairro del Castillo, durante muitos séculos a principal artéria da cidade, com as suas casas senhorais e magnificentes igrejas e conventos, entre eles o das Carmelitas Descalças, um edifício que é justamente considerado como um dos mais belos de toda a urbe e hoje ocupado pela Fundação Antonio Pérez, com uma importante amostra de pinturas, esculturas e livros. Até desembocar na Plaza del Trabuco, onde termina a Calle de San José e que é presidida pela igreja (data do século XV e terá sido a primeira a ser construída na cidade) também dedicada ao santo, é inevitável que o olhar se pouse, com uma frequência fora do vulgar, em algumas das construções civis mais proeminentes de Cuenca, como a Casa Zavala e o Palácio de los Toreno ou o antigo Colégio de los Infantes de Coro, agora vocacionado para o ramo hoteleiro (ver Posada de San José no capítulo Onde dormir).
De tanto subir, fico com a sensação de que não tardo a esticar a mão e a tocar o céu. Chego, sem grande pressa, ao castelo, ou melhor ao que resta dessa fortaleza outrora inexpugnável, como o Arco de Bezudo, restaurado há pouco tempo, uma parte da torre e uns vestígios da muralha. Do miradouro, com uma panorâmica soberba, avisto, ao fundo, o Convento de San Pablo e as casas suspensas.
Como o pobre em frente ao prato, continuo a adiar a aproximação àquele que é o emblema da cidade.
Subo e, à esquerda, deparo-me com bonitas casas térreas banhadas pelo sol, algumas delas transformadas em restaurantes e cheias de gente grata pelo bom humor do Outono, num ambiente que talvez se aproxime mais do que qualquer outro daquele que Cuenca proporcionava há muitos séculos, cheio de carácter, com uma identidade própria, que não se respira em mais lado nenhum em toda a cidade. A partir daqui, olhando com respeito o abismo, o cenário magnetiza, o que se vê à distância, já envolvido pelas sombras, tem algo de assombroso, a ponte de San Pablo, outra vez o convento, outra vez as casas suspensas, com as suas varandas de madeira que parecem minúsculas.
Está na hora de descer, pelo menos até à Plaza de la Merced e, sem supresa, de subir uma vez mais, agora ao longo de umas escadas que conduzem, como se esse fosse o meu destino final, à Plaza de Mangana, palco do monumento da Constituição, um trabalho de Gustavo Torner, e da Torre Mangana, ocupando o lugar antes preenchido pela fortaleza árabe. Olho o relógio da cidade, também na praça, que me indica que é tempo de partir, de voltar a descer.
Da ponte de San Pablo, a evitar para quem sofre de vertigens, fito as casas suspensas, aproximo-me cada vez mais daquelas que constituíram, noutros tempos, uma solução para a habitação e embrenho-me por uma praça perfumada, grato pela intimidade que me transmite. A Plaza Ronda, no bairro que em Cuenca todos conhecem como San Martín, está a dois passos de algumas bonitas mansões do século XVIII e princípios do século XIX. A noite cai subitamente, volto à ponte e por ali fico, até me fartar, olhando as casas suspensas que se enchem de luz, as suas varandas debruçando-se sobre o abismo engolido pelas trevas.
O pobre pode agora deliciar-se com o melhor que tem no prato. Lembro-me, uma vez mais, das palavras que lera um dia, da autoria de Camilo José Cela, o escritor galego que nasceu há 100 anos e a quem a cidade dedica um carinho especial. “O viajante descobriu Cuenca, e ao viajante não lhe cabe o coração no peito.” As luzes continuam a cintilar, há muitas estrelas no céu, Cuenca parece agora mais evocativa do que nunca. Talvez porque Cuenca é uma eterna catarse. 

GUIA PRÁTICO
COMO IR
Cuenca não é servida por qualquer ligação aérea e os aeroportos mais próximos são os de Barajas, em Madrid (160 km), de Albacete, mais ou menos à mesma distância, ou Valência, a pouco menos de 200 quilómetros de distância. Desta última ou de Madrid há pelo menos quatro comboios por dia que ligam a Cuenca e que cumprem o trajecto em cerca de três horas mas também há serviços de autocarro (o terminal está situado na Calle Fermín Caballero) desde diferentes cidades espanholas, pelo que é conveniente, se optar por esta solução, consultar os sites de algumas empresas como a Auto-Res S. L. (www.avanzabus.com), Alsa (www.alsa-grupo.com) ou MonBus (www.monbus.es). Se preferir alugar carro, uma alternativa que lhe permitirá visitar outros lugares nas redondezas de Cuenca, siga a A-3/E-901 (desde Madrid) em direcção a Valência e, uma vez chegando à localidade de Tarancón, entre na A-40/Cu-11, em direcção a Cuenca; se voar para Valência ou partir da capital da província homónima e da Comunidade Valenciana, circule na mesma via (A-3/E-901), em direcção a Madrid, até encontrar a povoação de Minglanilla, onde encontrará indicações para desviar para a N-320, no sentido Almodovar del Pinar-Cuenca. 
QUANDO IR
Cuenca goza de um clima mediterrânico continental temperado, marcado por dias frios durante o Inverno (época em que ocorrem as maiores precipitações) e por temperaturas suaves nos meses de Verão. Na prática, e não obstante a oscilação térmica registada ao longo de todo o ano, com particular incidência na época estival, a cidade pode ser visitada em qualquer altura do ano.
ONDE COMER
Cuenca é uma cidade onde as tapas ocupam um lugar especial na vida dos seus habitantes e, por tabela, entre os muitos visitantes que recebe ao longo do ano. Um pouco por todo o lado, não terá dificuldade em encontrar espaços que oferecem um petisco como complemento a uma bebida mas os melhores estão localizados na parte antiga, especialmente nas esplanadas que decoram a Plaza Mayor e na rua íngreme que está para lá das ruínas do castelo, a caminho do parque onde mais facilmente pode estacionar o seu carro. Abundam as especialidades, como cordeiro assado ou de caldeirada, a perdiz, bem como o presunto e queijo manchegos, cujas fronteiras há muito ultrapassaram os limites da província. Pode sempre experimentar o Mesón Colgadas, na Calle Canónigos, 3, com uma panorâmica sobre o convento de São Paulo e a ponte de ferro, o Figón de Pedro, na Calle Cervantes, 13, com cozinha tradicional, ou o San Nicolás, na Calle San Pedro, 15, num edifício histórico da cidade, onde o bom gosto acompanha muitos dos seus pratos, muitos deles premiados ao longo dos anos. 
ONDE DORMIR
Para uma experiência inesquecível, a melhor opção passa pelo Parador de Turismo, abrigado no antigo convento de São Paulo, com o seu estilo gótico tardio. Erguido no século XVI, por ordem do cónego Juan del Pozo, na presunção de o oferecer aos dominicanos, serve de cenário, desde 1993, para o Parador Nacional de Turismo, com mais de seis dezenas de quartos que se dividem por três pisos e decoradas segundo um estilo castelhano clássico — algumas têm vista para o claustro e outras, mais apreciadas ainda, uma panorâmica soberba sobre a foz do rio Huécar, a ponte de São Paulo e as famosas casas que se debruçam sobre o abismo.
Ocupando uma das dependências de uma antiga mansão do século XVIII, na parte alta da cidade, na San Pedro, 58-60, o Leonor de Aquitania, nome da irmã de Ricardo Coração de Leão e mulher de Alfonso VIII, é uma alternativa a considerar, com algumas das habitações com vista para a Ronda del Huécar e um restaurante, o Horno de las Campanas, que vale a pena experimentar. Finalmente, se nenhum destes dois lhe agradar, tente a Posada de San José, na Calle de Julián Romero, 4, outra mansão, do século XVII, célebre por ter acolhido a filha do pintor Velásquez e a sua família e onde, numa das habitações, o artista sevilhano terá produzido, alegadamente, o esboço de Las Meninas. Os quartos, inspirados num estilo rústico, são confortáveis e a pousada tem uma história que remonta aos anos 50 do século passado, quando foi fundada por Fidel Garcia Berlanga, irmão do conhecido cineasta Luís Garcia Berlanga (1921-2010).
A VISITAR
Situado numa das casas suspensas, propriedade da edilidade, o Museo de Arte Abstracto Español justifica uma visita demorada ao longo da disposição labiríntica do seu interior. Gerido pela Fundação Juan March, o espaço foi inaugurado há precisamente 50 anos, com pinturas e esculturas do conceituado artista Fernando Zóbel e de outros representantes da denominada geração abstracta. Actualmente, acolhe uma exposição permanente de trabalhos assinados pelos melhores artistas desse movimento, dos anos 1950 e 60 mas também das décadas de 80 e 90, bem como uma das mais importantes bibliotecas especializadas em arte.
Não deixe de dedicar também algum tempo ao Museu Arqueológico, na Calle Obispo Valero, 12, ao Museu Diocesano, no Palacio Episcopal e, mais ainda — porque é o tempo que o comanda — ao Museu das Ciências de Castilla-La Mancha, na Plaza de la Merced, 1.
Fora da cidade, aproveite para errar por umas horas pela Cidade Encantada, a menos de 40 quilómetros de Cuenca, onde o rio Júcar, na sua caminhada entre Uña e Villalba de la Sierra, forma uma garganta profunda. A acção da água, do vento e do gelo moldou a paisagem com uma precisão difícil de perceber para um leigo mas ao ponto de criar rochedos que intrigam o visitante pelas suas formas insólitas. 
INFORMAÇÕES
Os cidadãos portugueses apenas necessitam de um documento de identificação (que tanto pode ser o passaporte, como o Bilhete de Identidade ou o Cartão de Cidadão) para visitar o país.
Fonte: Fugas

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