terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Phaphos: O Chipre dos mitos, lendas e da arte

Quando se fala de Paphos, fala-se de amor, de Afrodite, desse rochedo que resiste aos humores da natureza, contrariando a história da cidade, que foi durante séculos a capital de uma ilha que agora pretende harmonizar, aproximando as comunidades turca e grega. Paphos é Capital Europeia da Cultura em 2017.

O Parque Arquológico de Phaphos

Se alguém imaginasse, sob os túmulos dos reis, que Paphos se haveria de tornar, tantos anos depois, uma capital, muitos turistas teriam uma surpresa — ou um susto — ao visitar um dos lugares de culto da cidade cipriota.

As cidades, como Paphos, actualmente com cerca de 50 mil habitantes, não são muito diferentes. Têm os seus momentos de esplendor, de glória, logo podem evidenciar sinais de decadência, de se desfazerem em pó, nada mais restando do que uma ruína — a história, como a lente de uma câmara, agarra esses momentos.

Paphos, a despeito de já haver acolhido alguns eventos durante este mês, tem marcada para dia 28 de Janeiro a cerimónia oficial de abertura como capital europeia da cultura, inspirada pelos mitos e com mostras que exacerbam a história, a herança cultural, todo um legado que se apoia na diversidade e no multiculturalismo ao longo dos séculos até chegar aos dias de hoje, de uma cultura mais moderna e aberta, não apenas cipriota mas também europeia.

Como um coração que pulsa mais do que os outros, a cidade enfatiza esse mito que está tão associado ao seu nascimento, à bela história de amor entre Pigmalião e Galateia.

Aos poucos, o crepúsculo baixa sobre Paphos, o sol já se perdeu no horizonte azul manchado de laranja e, uns minutos mais tarde, como que embebido pelas estrelas, o porto, sobre quem parece pesar a responsabilidade de zelar pelo castelo, é iluminado pelas luzes. Entretido pelas minhas memórias, deixo-me invadir por uma vaga de nostalgia quando fito o cenário, mais composto ainda quando dois pelicanos se enquadram na moldura, passeando como um casal varrido por uma onda de romantismo.

Pelo menos é assim que os vejo no momento em que Pigmalião e Galateia regressam ao meu cérebro cheio como um ovo de recordações. Numa cidade moldada por mitos e lendas, reza a história que Pigmalião, um proeminente escultor, sedento de se dedicar à sua arte e, ao mesmo tempo, descontente com a vida fácil a que se entregavam as mulheres em Amatonte, tomou a decisão de viver no mais completo celibato, uma atitude que provocou o desagrado de Vénus, cujo templo se erguia nessa mesma cidade da ilha. Vénus não compreendia e não podia aceitar uma existência sem amor e, ofendida com Pigmalião, vingou-se desse homem que trabalhava a pedra, enfeiticiando-o ao ponto de ele se apaixonar por uma estátua esculpida do marfim, uma obra de uma beleza sem paralelo, talhada pelo seu cinzel e a que a deusa do amor resolvera chamar Galateia.

A tristeza preencheu o coração de Pigmalião e, assomado por essa aventura solitária que adquiria a forma de desventura, vivendo nessa angústia, o artista começou a dar eco a súplicas que ao fim de algum tempo acabaram por comover Vénus. E esta, para quem o amor era prioritário, animou a estátua com o fogo da vida, nessa nova condição Galateia casou com Pigmalião e desse matrimónio nasceu um filho (há quem defenda, entre outras teses e interpretações para as origens da toponímia, que era uma filha) a que ambos deram o nome de Paphos.

Soa bem a história, a lenda, o mito. E Paphos fundou a cidade.

A arte ao ar livre

Forte de Phaphos


Eternamente grata ao seu criador, a cidade celebra a sua criação na convicção profunda de que é, ela própria, uma peça de arte, um museu a céu aberto, neste ano tão especial uma Open Air Factory, o conceito em que se baseia e que não se limita ao espaço — a abertura visa, talvez até com maior afectação, a tolerância, a aceitação e o encorajamento e a integração de culturas, ideias e crenças. Paphos funciona, desde tempos imemoriais, como uma ponte entre o oriente e o ocidente e, nesse sentido, assume em 2017 uma parte significativa da responsabilidade de ligar continentes, de aproximar a Europa de que faz parte ao Médio Oriente do qual está tão perto, proporcionando um intercâmbio de culturas. Em simultâneo, o programa de Paphos como Capital Europeia da Cultura pretende minimizar as diferenças entre os turistas, os residentes e os imigrantes, numa tentativa de transformar todo o distrito, simbólica e fisicamente, num espaço comum e de partilha para todos os cidadãos.

Mas as boas intenções de Paphos não esquecem, nestes tempos conturbados, a realidade de uma ilha dividida desde 1974, duas comunidades em permanente tensão, a grega no sul, a turca no norte — as iniciativas, para encurtar as distâncias, serão uma realidade durante 360 dias, inseridas no tema Stages of the Future, uma refererência ao futuro mas também ao presente através de mostras de um mundo contemporâneo e dos seus avanços tecnológicos, os seus problemas, sonhos e esperanças, bem como as suas iniciativas e ideias para uma mudança, particularmente focada num futuro em comum das duas comunidades cipriotas e no desenvolvimento de um diálogo intercultural, na verdade os dois pontos-chave daquela que é uma das grandes apostas de uma das capitais europeias da cultura este ano.


Perscrutando as luzes dançando nas águas e recebendo a brisa e a fragrância vinda do mar, o meu imaginário sente-se seduzido pela história deste porto estratégico, tomado pelos Ptolomaicos no início do século IV a. C., pouco depois da conquista do Egipto. Nikokles era, por essa altura, o rei de Paphos e a sua ascensão ao trono traduziu-se num desenvolvimento significativo do reino, especialmente quando o soberano decidiu abandonar Palai Paphos e instalar-se na actual Kato Paphos, cuja fundação remonta ao ano 320 a. C. — a cidade antiga perdeu importância, enquanto Kato Paphos, decididamente virada para o mar e com vocação para o comércio marítimo, revelava todo um potencial que não tardaria a ser aproveitado. Era o início de uma nova era para Paphos, que rapidamente se tornou no centro cultural, financeiro e administrativo da ilha, provando que a decisão de Nikokles estava correcta — e a cidade, mais tarde mandada fortificar pelo rei (as ruínas ainda hoje se podem ver), permaneceu como capital durante cerca de 400 anos e assim se manteve quando se submeteu ao jugo dos romanos.

Paphos foi violentamente atingida por um terramoto 15 anos antes do nascimento de Cristo — a cidade ficou reduzida a ruínas. E outros se seguiram ao longo da sua história, o último dos quais em meados do século passado, destruindo uma cidade que também não foi poupada, anos antes, em 1878, pelos otomanos, que a abandonaram entregue à sua fome e miséria, com alguns minaretes decorando antigas igrejas. 

Por agora, a baía permance tranquila, envolvida numa serenidade tão apaziguadora e, ao contrário de Paphos e dos treinadores, imperturbável, aparentemente menos vulnerável aos humores do mundo, de uma beleza singular. Aqui e acolá, casais de namorados, observando a espuma que se desfaz na praia, acreditam que o amor é eterno e mesmo que, aqui, tão perto de Paphos, novamente capital, a deusa Afrodite irá emergir das águas com o seu corpo de marfim, ainda mais bela do que Galateia, a estátua que se transformou em mulher para dar um filho a Pigmalião.

Fonte: Fugas - Público 

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